sábado, 21 de dezembro de 2013


UM SEGUNDO DE VALOR

 
A confusão era grande na fábrica do tempo. Uma avaria, surgida não sabia de onde, fazia com que alguns minutos tivessem apenas 59 segundos. Assim que o controlo de qualidade se apercebera de tal falha, bloqueara a produção, e agora o stock de minutos disponível estava quase a esgotar-se. Se não conseguissem retomar o fabrico, o mundo viraria um caos.

Os melhores técnicos de produção do tempo reuniram-se de emergência, mas apesar de horas de análise sem interrupção, não conseguiam detectar a falha.

– Um vírus, só pode ser um vírus! – afirmara o Prof. Século com o ar convicto que a idade lhe concedia.

– Nada disso – cortava irreverente o Engº Ano, cuja juventude não o impedia de expressar uma opinião segura. – Trata-se de uma irregularidade na linha de contagem. Por alguma falha, que ainda não identificámos, a cada dezena a linha conta mais um sexto, daí que, no final, falte um segundo em cada minuto.

– Eu sou da opinião que deveríamos primeiro analisar a produção de segundos. É possível que seja aí o problema. Poderemos ter segundos com duração superior à standard.

Todos olharam com respeito para o Dr. Década que, até ao momento, estivera como que ausente da reunião. Quem sabe se não teria razão?

De imediato, se constituiu um grupo de trabalho para analisar a constituição dos segundos e dos minutos.

Na ala leste da fábrica, os mais jovens temporizadores corriam em todas as direcções, agrupando as milésimas de segundo. Cada segundo produzido era colocado num suporte que, quando completo, transitava para a ala sucessiva. Aí eram descarregados e agrupados em minutos.

O grupo de trabalho observava de longe a azáfama das alas. Tudo parecia correr como descrito no processo. Decorrida uma hora de observação e análise contínua, preparavam-se para abandonar o local e redigir o relatório que asseguraria que a produção respeitava quanto estipulado, quando o Sr. Semana gritou, apontando para o fundo da sala: “Está ali o defeito!”

Do extremo oposto, um temporizador esforçava-se por manter o ritmo dos restantes, mas o facto de coxear ligeiramente, fazia com que se atrasasse de um modo quase imperceptível. O suor inundava-lhe a face e, com o rosto de dor que não conseguia evitar, tudo fazia para não abrandar, mas era inegável que era mais lento, se bem que milionesimamente mais lento que os restantes.

O Sr. Semana foi elogiado, e teve até direito a louvor na ordem do dia, pelo facto de ter evitado que o mundo se desregulasse temporalmente.

O Conselho Sénior dava por encerrada a reunião, validando o regresso à normalidade secular, quando o jovem Arquitecto Mês irrompeu pela sala do Conselho, manifestando todo o seu desagrado pelo modo como os humanos usavam o produto por eles fabricado. Eram horas, dias, meses e mesmo anos desperdiçados em picuinhas, atrocidades, destruição. Porque é que os fazedores do tempo se deveriam esforçar tanto, se depois todo o seu zelo era jogado no lixo?

Antes que o Conselho se refizesse da entrada não anunciada, já o jovem Mês ocupara a varanda que dava sobre o pátio central e, com voz grave e imponente, se dirigia a todos aqueles que aproveitavam o período de folga.

– Colegas temporizadores, chegou o momento de valorizarmos o nosso trabalho. A cada dia, produzimos tempo da melhor qualidade e para quê? Para que os humanos o desperdicem da maneira mais vil. Basta olharmos um pouco sobre a terra, para ver focos de violência em todos os continentes. A idade não é mais algo que mereça respeito, a infância não é mais uma época que se percorra brincando, a família não é mais o braço que sustém e ajuda a crescer. O tempo que nós produzimos é bem mais valioso que tudo isto.

No largo, os temporizadores começavam a agitar-se e a manifestar palavras de acordo. Na sala do Conselho, o ambiente era de preocupação, e havia mesmo quem quisesse chamar os controladores para pôr fim àquele discurso arrivista.

– Nada disso – interveio o Prof. Século, revendo-se naquele jovem impetuoso, que o tempo ensinaria a ser mais paciente.

– Por isso, meus companheiros, proponho que façamos greve. – O Arquitecto Mês aguardou expectante a reacção.

– Sim! – gritaram todos em coro, sem saber, de facto, o que isso significaria.

– Mas uma greve direccionada à qualidade do tempo – clarificou o Mês. – Não iremos pôr fim ao tempo, mas iremos repetir cada dia até que os humanos aprendam a dar valor a cada minuto e mesmo a cada segundo. Proponho que a partir das zero horas de hoje se repita o mesmo dia até que cada segundo seja tratado como merece.

Ao aplauso geral que se elevou do largo inundado de temporizadores, juntou-se o Conselho, presidido pelo Prof. Século, que abertamente apoiava o jovem Mês. Os outros, não querendo ficar para trás, deram também a cara por esta causa. Desde então, é sempre dia de Natal.


 

 

domingo, 10 de novembro de 2013


Que golpe!


O golpe deixou-a sem ar, tonta. Depois massajou o polegar.

Era um daqueles momentos em que coas os pensamentos, procurando encontrar a saída do caos, mas as únicas ideias que tens são ocas de sentido.

Duas suaves batidas na porta apressaram-na. «Que saco!», pensou. Sentia asco até da velha soca que espreitava debaixo da cama.

Não falaram muito durante o trajecto para o hospital, onde o médico, desinteressado, empurrou o caso para o enfermeiro:

– Quero que cosa!

sábado, 9 de novembro de 2013


Aposentado

– Senta-te lá aí sossegado. Que raios!
– Desculpa – murmuro olhando os cacos da chávena que as minhas mãos não conseguiram segurar e entristeço-me ao perceber que os canso. Sou lento a chegar ao fim da rua, mas os meus passos às vezes ganham vontade própria. Lamento, se faço as mesmas perguntas vezes sem conta, mas a minha memória nem sempre as retém. Sei que não tenho a energia de outros tempos, mas perdoem-se se recuso aposentar-me da vida.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Desafio nº 54 em 77 palavras

A TERRÍVEL NOTÍCIA

Naquela noite saíra de casa com o peso da terrível notícia, da palavra que não pudera mais ser calada. Um mar de emoções invadira-o, deixando-lhe o coração deserto. O susto retirara-lhe qualquer ousadia, e fora a imoderação que o fizera partir sem destino, ignorando qualquer regra.

 Queria ter amansado a curiosidade que desmascarara a verdade revelada em confidência.
Queria ter abandonado o quarto, antes que a mãe lhe tivesse sussurrado, tristemente:

 – Ele não é o teu pai.
 


segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Desafio Nº 53 (77 palavras)

SUSSURRO

No sussurro das árvores ouvimos o vento, que rodopia através de ramos, e admiramos a maleabilidade com que elas se moldam à sua força.

Por vezes, sopra com subtileza, quase como uma carícia. Noutras alturas, chega desenfreado, arrancando flores e frutos e deixando o pomar com sentimento de perda.

Mas, nem assim elas se vergam. Persistem orgulhosamente de pé, esquecem os pedaços que o vento levou e almejam já os novos frutos, que pesarão nos seus ramos.

domingo, 13 de outubro de 2013

Nota de Margarida Fonseca Santos no Facebook

Pascoal - Ousar Vencer, de Quita Miguel

11 de Outubro de 2013 às 15:17
Partilho convosco um livro que, imagino, irá tocar o coração de muitos...
Trata-se de Pascoal - Ousar Vencer, o primeiro livro de Quita Miguel, acabo de publicar pela Ed. Estampa.
A Quita tem-se cruzado comigo em várias situações: conversas sobre livros, pequenos cursos de escrita, as histórias em 77 palavras e, o que me marcou bastante, na EscritaCriativaOnline, onde pude acompanhar, semanas a fio, histórias de uma qualidade rara. Posso dizer-vos que ficámos amigas, mas também posso dizer-vos que admiro muito a sua escrita.
Ficou claro para mim, logo aos primeiros esboços, que estava perante alguém que, não só tinha uma escrita muito original, muito sua, como também era portadora de uma sensibilidade que não se encontra com facilidade. Mais interessante ainda, sabe partilhá-la.
Capaz de juntar humor e dramatismo, aventura e reflexão, carinho e revolta, os seus textos ganham uma dimensão humana muito particular, capaz de tocar o leitor e (para mim o mais importante) levá-lo a pensar por si.
Esta sua primeira história, Pascoal - Ousar Vencer, é um romance juvenil. O tema central, a adopção, é tratado com o cuidado de carregar em teclas fundamentais: as dúvidas, os receios, a expectativa, a esperança, a desilusão, o medo da dependência, o medo da independência, o choque de gerações e a capacidade de mudar. Como pano de fundo, temos a infinita capacidade de amar.
É um livro comovente, que vai deixar o leitor preso do princípio ao fim e que o fará tomar partido, pensar, colocar-se no lugar de cada personagem e sentir a complexidade do tema.
Aconselho-vos a ler este livro. Sei que se irão comover - eu comovi-me, muito.
Parabéns à Quita Miguel, pois entrou com chave de ouro no mundo da literatura infanto-juvenil.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Sonhos de flauta

O maestro marcava o compasso, mas da flauta só silêncio saía.
Foi a trompa a salvar a situação com o seu potente sopro. Pelo chão derramou-se uma música confusa, pois as notas não sabiam se eram colcheias, semicolcheias ou semifusas.
Num suave ruído, a flauta confessou o seu sonho. Ser clarinete. E, na sua ilusão musical, pensava que, se se empanturrasse de notas, poderia crescer e tornar-se num. 
Mas, ou se nasce clarinete, ou não se nasce.

Quita Miguel

Desafio nº 52 – uma história com música, ruído e silêncio

http://77palavras.blogspot.pt/

sábado, 28 de setembro de 2013

Notas de autor, na TSF
A semana passada, as notas de autor,
a parceria TSF - SPA
estiveram a cargo da escritora Margarida Fonseca Santos
Aqui ficam os programas:




Segunda, dia 23 de Setembro - o romance "Deixa-me Entrar na Tua Vida" - ouvir

Terça, dia 24 de Setembro - o blog histórias em 77 palavras - ouvir

Quarta, dia 25 de Setembro - apresentar a banda portuguesa Joana Prata - ouvir

Quinta, dia 26 de Setembro - Brasil em Transe, na Fábrica de Braço de Prata - ouvir

Sexta, dia 27 de Setembro - Índice Médio de Felicidade, de David Machado,
e Pascoal - Ousar Vencer, de Quita Miguel - ouvir

domingo, 22 de setembro de 2013

Histórias em 77 palavras: http://77palavras.blogspot.pt/

Desafio nº 51 – sobre uma imagem de Francisca Torres

Lupa
Lupa, a lagartixa, fazendo apelo à sua esperteza, caminhou ao longo da parede, percorrendo o espaço que a separava da cabeceira da cama do amigo. Era uma amizade estanha aquela, que alguns, por não a compreenderem, queriam proibir.
Chegou a tempo, de ver a mãe beijar-lhe o rosto e regressar à sala.
O rapaz estava lúcido, mas ainda fraco.
Com a cauda, Lupa fez um gancho e deixou-se ficar pendurada na cabeceira da cama, velando-lhe o sono.

Quita Miguel
 
 

sábado, 21 de setembro de 2013

Pascoal - Ousar Vencer

Pascoal – Ousar Vencer já anda aí pelas prateleiras de algumas livrarias e pelos sites:

http://www.wook.pt/product/facets?palavras=quita+miguel
http://www.bertrand.pt/?palavra=quita+miguel&restricts=8066&facetcode=temas
http://estampa.pt/novosite/

Integrado na coleção Campeões da Estampa, este romance dirige-se ao público juvenil.

“A vida de Pascoal dá uma reviravolta quando deixa o orfanato ...para ir viver na fazenda da Família Lança. Irrequieto e curioso, Pascoal anda sempre em busca de uma nova aventura, de uma experiência diferente, que nem sempre corre bem, mas pelo menos serve para mascarar a saudade que às vezes ataca. Contudo, o verdadeiro desafio será fazer com que todos, incluindo ele, se aventurem a revelar os sentimentos sem receio.”