terça-feira, 30 de dezembro de 2014


Palratório Chato


Não há quem não afirme que Julinho Pitorra está mais para político, que para cómico. É que as graças arrancam apenas bocejos. Palratório chato! Os risos, esses ficam longe. Palco que Julinho pise é monotonia na certa. Mas insiste e, agora que o ano termina, ali está ele com a cara e a coragem, mas sem graça.

Sobe no palco, afina o tom e inicia o obsoleto repertório. Ninguém escuta.

Começa o ano sozinho, numa sala cheia.
 
Quita Miguel
Desafio nº 81 em 77 palavras sem d nem v.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014


PRIVAÇÃO DE PRIVACIDADE

 
O vermelho domina a paisagem. São as pétalas suaves e aveludadas das papoilas que cobrem a planície e ondulam com suavidade ao sabor da brisa.

Mais ao longe, uma árvore que o vento e o tempo despiram, impõe-se autoritária sobre o prado, onde as ovelhas saboreiam a erva verde, que a natureza com generosidade lhes oferece.

Junto ao mar, secam as redes, que mãos secas e endurecidas ainda há pouco puxavam das águas.

Um mar que agora se revolta sob a tempestade que se adivinha. A escuridão começa lentamente a fechar-se sobre a montanha, alongando a sombra da ermida abandonada, que protege a vinha dourada, que perfuma o campo.

Em breve será o cheiro a terra molhada. Um perfume que, por vezes, gostaria que pudesse ser feito de encomenda.

Uma dupla certeza me envolve: a de que pertenço a este lugar e a de que só aqui poderei ser feliz. Quanto a isso não pode haver engano.

Mas já a vida me chama para outras realidades, e parto com a lágrima e a saudade.

Dou um autógrafo antes de entrar no carro.

«Por quem me toma? Eu sou apenas um cidadão comum», tenho vontade de dizer, mas falta-me coragem, apesar de me incomodar, cada vez mais, ver o meu dia-a-dia interrompido por pessoas que não conheço, mas que me conhecem. Isso parece dar-lhes o direito de me interpelarem diversas vezes.

Não são poucas as ocasiões em que me apetece, apenas, voltar as costas ao circo em que a sua vida se tornou e mergulhar no anonimato. Como seria bom. Com um sentimento de melancolia vejo a paisagem ficar para trás, enquanto as pequenas estradas dão lugar às grandes vias, e o silêncio é sufocado pelo rumor da cidade. Conduzo sem pressas, numa tentativa ingénua de retardar a chegada. A alegria que senti no início da carreira, cada vez que me apelidavam de artista, torna-se agora um peso. Música, dança continuam a ser o seu mundo, mas o sorriso não mora mais na minha face.

Por fim, chego ao teatro, onde um homem, grande e de peito entufado, faz a segurança da entrada dos artistas. Subo ao palco e tudo se transforma. Aqui sou outra pessoa. Ao som da música que envolve a sala, o meu corpo dominava o tablado, esquecido de quem sou, entregando-me a cada nota.

No final da noite, regressa a realidade, e só reganho a paz quando, entrando em casa, dou as costas ao mundo que esqueço lá fora. Busco o silêncio numa tentativa de apagar a fama, que deixou de me acariciar, para me agredir.  

Deito-me na cama, puxou o lençol e sonho com a água a despencar da cachoeira, as aves exibindo os voos, a natureza prosseguindo no seu ritmo lento de ser. Lamento que a este hibernar se siga sempre um acordar. São milhares os que desejam estar no meu lugar, não imaginando a tristeza que me envolve a cada abrir da porta que me liga ao mundo.

Será que a felicidade suprema e permanente existe? Estou tentado a dizer que não, apesar de continuar à procura do caminho que possa conduzir-me a esse imaginado paraíso. Se algum dia desvendarei o mistério, não sei, é que ser-me-á impossível viver sem a música e, no entanto, é-me doloroso viver com ela.

Quita Miguel

sábado, 20 de dezembro de 2014


Salva in extremis

Não se falava noutra coisa senão nos enfeites de Natal. Organizado pelos mais velhos, coube aos mais pequenos decorar a árvore.

– Aiiiiiiiiii! – gritou Ricardo Nuno, ao mesmo tempo que dava um pulo para trás quase derrubando a avó, que tentava pôr ordem no recinto.

– Uiiiiiiiiiii! – gritou a aranha, vendo-se ameaçada pela vassoura e adivinhando passar a consoada ao relento.

Foi salva in extremis pelo avô, que ordenou:
– Que ninguém se atreva a tocar-lhe. Aranha é dinheiro certo!


Quita Miguel

Desafio nº 80 – o Natal da aranha

terça-feira, 16 de dezembro de 2014


IMPACIÊNCIA

"Todas as falhas humanas provêm da impaciência", já dizia o amigo Franz Kafka.

Queremos tudo para ontem, recusamo-nos a saborear a espera que nos prepara para o amanhã, e quando nos dizem que somos os argumentistas do nosso filme, continuamos a escrever de modo repetitivo, alimentando a personagem que não queremos ser.

Em vez de apostarmos na criatividade e arriscarmos num novo percurso, insistimos nos mesmos erros, aqueles bem banais que não se perdoam nem no primeiro ciclo de vida.

Continuamos a remoer no que não queremos, no que nos magoa, no que nos incomoda, dando-lhe desta forma energia para cresça e se multiplique. E, cada vez mais, o que temos é o que não queremos.

Pretendemos que o outro seja como nós, pense como nós, sinta como nós, aja como nós, esquecendo que todos somos um, mas que as peças que constroem o puzzle da unidade têm arestas diversas, e é essa individualidade que enriquece o ser divino que todos somos.

Quando a tristeza é o que nos alimenta, nada como uma boa gargalhada, mesmo sem vontade, um “amo-te muito” ao espelho e a consciência de que tudo é passageiro, tudo mesmo, não só os passageiros do autocarro.

Ao inverno frio, cinzento, chuvoso seguem-se os dias de céu azul, do sol a acarinhar-nos a pele, da natureza efusiva por mais um ciclo que se inicia, que terá fim, é certo, mas que é magnífico enquanto dura.

E não vale a pena levarmo-nos tão a sério, ninguém leva.

É bom sentirmo-nos bem, só porque sim, amar, só porque sim, sorrir, só porque sim. As coisas na vida não necessitam ter sempre um propósito, ou melhor, tudo na vida deveria ter um único propósito: a felicidade.

Então sejamos felizes com o que temos e aceitemos o maravilhoso, que apenas espera uma abertura para se mostrar.

Por mim, começo cada dia agradecendo e pedindo para que os meus anjos estejam comigo para me ajudar, guiar e proteger. E sei que eles estão, contribuindo para que cada dia seja pleno de iluminação.
Quita Miguel

sábado, 13 de dezembro de 2014

NESTE NATAL OFEREÇA COMPANHIA
 
 
 
 
FLORISTA



– Que jeitoso – disse ela de um modo carinhoso, olhando o arranjo monstruoso que ele transformara em algo tão harmonioso.

Ele sabia ser maravilhoso, e isso deixava-a deleitada.

Ela sabia-o engenhoso, sempre pronto a encontrar uma primorosa solução. Com as flores, revela-se de facto talentoso, deixando transparecer a característica afetuosa que nem sempre gostava de mostrar.

Amorosa aproximou-se e dengosa beijou-o de um modo gostoso.

Prazeroso, ele sorriu, retribuiu o beijo delicioso e raptou-a. As flores podiam esperar.

Quita Miguel

Desafio RS nº 20 – 14 palavras acabadas em -oso, -osa

sábado, 6 de dezembro de 2014


INDEPENDÊNCIA

 
Avaliando a vida que levava, admitiu que a primeira tentativa de independência se revelara dolorosa. Procurava reagir, mas não se conseguia perdoar pela intempestiva saída de casa.

Chegou-se ao fogão, mais para se aquecer do que para cozinhar qualquer coisa. Comer era uma obrigação que cumpria para sobreviver, isenta de qualquer prazer. À noite, na cama, procurava a presença que não estava e isso doía-lhe fundo.

Pensou nas prestações que ainda lhe faltava pagar pela televisão que quase nunca acendia, e isso afastou-lhe o sono. Que pena, não ter um botão para hibernar.

«Para com os lamentos, fecha os olhos e deixa-te ir», repetia, na tentativa de enganar a insónia.

Deveria existir um elixir do amor, que se pudesse tomar em doses pequenas, mas regulares. E mais uma coisa: um elixir contra a burrice e a intempestividade. À falta disso, levantou-se, enrolou um cigarro e foi sentar-se na varanda, envolto num cobertor. Mentalmente enumerou o que lhe fazia mais falta, o que perdera e o que nunca tivera.

Compreendeu que entrara naquela fase da vida em que não se pertence a lado nenhum, vive-se numa terra de ninguém, num meio mundo, numa meia verdade e num absoluto desgosto.

A comunicação reduz-se a um «bom dia», quando se entra no emprego, e a uma «boa tarde», quando se sai. E não está longe o dia em que, com indiferença se chega e parte, e isso transmite-nos o conhecimento do que é a solidão. Contudo, continua-se a mentir para o mundo, dizendo que se está: «Muito bem, obrigado», escondendo as lágrimas que escorrerem pelo rosto com facilidade. Os lenços acumulam-se espalhados pela casa, mas camuflamos-lhes a utilização, dizendo, que estamos a ficar um pouco constipados.

Terminou o segundo cigarro e com ira, reganhou o lugar na cama. Impotente, permitiu que a raiva crescesse dentro dele, procurando um culpado que não havia. Sabia porquê: preferia dar força à revolta, a sentir-se pusilânime, arrastando-se ao longo dos dias.

 

– Pois é… mais um dia – resmungou quando o despertador tocou, cedo demais para quem prolongara a noite.

A mão acariciou a almofada que ninguém usava, mas que ali permanecia, para lhe evidenciar o espaço vazio, enxotando a harmonia que não se permitia sentir. Fechou os olhos e sem se aperceber mergulhou num sono profundo, onde ouvia a voz dela cantando. Procurou-a sem cessar, seguindo uma voz que não tinha corpo. De repente, algo lhe agarrou as pernas. Esforçava-se por avançar, mas as trepadeiras amarinhavam, rodeavam-lhe já os joelhos, remetendo-o à imobilidade.

Ao longe viu-a surgir, envolta numa névoa, que se ia desvanecendo à medida que ela caminhava na sua direção. Pessoas começavam a aproximar-se, cumprimentando-a, felicitando-a, envolvendo-a, camuflando-a.

Um som estridente envolveu o ar e ele abriu os olhos sobressaltado, procurando-a e, mais uma vez, encontrando o lugar que ainda lhe pertencia, mas que ela não ocupava mais.

Atendeu o telemóvel.

– Mas onde raio é que andas? O buffet tem de ser serviço dentro de meia hora. Achas que dou conta do recado sozinho?

Saltou da cama, vestiu-se. Não havia tempo para tomar banho ou fazer a barba. Correu para o carro. Só lhe faltava perder também o emprego. Nesse caso, a desgraça seria completa.

– Até que enfim. Já fiz quase tudo. Isto de uns só receberem e os outros trabalharem….

– O que é que falta fazer? – perguntou, cortando a lamentação do colega.

Atirou-se aos ovos, mexendo-os com um pouco de leite e ervas do jeito de que ela gostava. Adorava cozinhar para ela e, um dia, sem perceber porquê, deixara de o fazer. Tudo lhe começara a parecer pesado, repetitivo, sem graça. Ela estranhara e ameaçara:

– Se um dia eu souber que andas metido com outra mulher!...

Ele cansou-se. Ansiou por liberdade, por solidão, por silêncio, por ausência de horários e de compromissos e saiu com um adeus.

Colocou os ovos na travessa e dirigiu-se para a sala de receção que começava a encher-se. Não fazia ideia do que se tratava. Nunca o preocupava a quem servia, apenas o que servia. Olhou em volta, certificando-se de que nada faltava. Então, uma voz sobressaiu do meio das restantes:

– Eu vou optar por uns ovos. Parecem do jeito de que eu gosto.

Virou-se e viu-a, sorrindo para alguém que não era ele e, nesse momento, percebeu que a perdera definitivamente.

Quita Miguel

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

NÃO, TALVEZ OU SEMPRE?


O grande negador reinava na terra do não, um lugar onde nada era permitido.
Os pequenos sonhadores, cansados da constante negação a tudo o que queriam fazer, atravessaram a fronteira, numa noite em que lua não brilhava, e entraram no país do talvez, uma nação enorme governada pela indecisão.
Também ali se sentiram perdidos e fugiram para um minúsculo país entalado entre as montanhas. Aí descobriram sorriso, alegria e harmonia. Foram quase felizes, num sempre muito pequeno.

Quita Miguel

Desafio nº 79 – quase felizes, num sempre muito pequeno.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Mais um conto publicado, desta vez na coletânea «O Futuro está já ali» da Pastelaria Studios.

«Sem Culpa» aborda o impacto que o nascimento de uma criança com Síndrome de Down pode trazer a uma família.

Encomendas por e-mail:
livrosquitamiguel@outlook.pt

quarta-feira, 26 de novembro de 2014


SONHO DE VIDA

Nadine respirou fundo, sentindo-se plena. Nunca gostara de comédias. Os filmes que a faziam chorar, esses sim, eram filmes de verdade. Vivia cada minuto como se fosse um personagem, não um qualquer personagem, mas aquele que sofre, o que ninguém respeita e que todos ridicularizam ou ignoram. Sentia-se bem com esse sofrimento.

Deixou o cinema e caminhou pela avenida sem destino. Não via sequer em que direção ia, seguia apenas, deixando que um pé se colocasse na frente do outro. Quando deu por si estava na beira do rio. Sentou-se e fantasiou um encontro, como os que só acontecem nos filmes e, tal como esperara, ninguém apareceu.

No caminho para casa, comprou uma revista, daquelas que mostram o mundo feliz das pessoas que são alguém, que todos reconhecem e admiram. Gostava de as folhear, idealizando-se em cenários tropicais ou estâncias de neve, lugares que a vida ameaçava nunca lhe dar a conhecer. Mesmo assim, sonhava e isso deixava feliz.

Quando colocou a chave à porta, a magia desfez-se com um: «Estava a ver que nunca mais chegavas. Vê lá se vais fazer o jantar, que o teu pai não tarda aí.»

Bem-vinda à realidade. Foi para a cozinha e, com rapidez, passou de princesa a gata borralheira. Quando, após o jantar, acabou de arrumar tudo, fechou-se no quarto. Desejava estar sozinha de modo que ninguém pudesse interromper o seu divagar. No entanto, o sossego durou pouco, já que a irmã, nessa noite, resolveu não sair. Espaçosa como era, apossou-se da revista e só a largou depois de a ter lido de uma ponta à outra.

– Já viste este concurso? Oferecem uma viagem a quem escrever uma história sobre a sua vida. Tu, que tens a mania que sabes escrever, até podias concorrer. Não que a tua vida tenha alguma coisa para contar, mas podes sempre mentir – disse a irmã, atirando-lhe com a revista.

A verdade doía, porém via-se forçada a concordar que a sua existência era um dia-a-dia sem história e, ainda que mentisse, com certeza alguém escreveria algo melhor. Para quê dar-se ao trabalho? Fechou a revista e deitou-se. Nessa noite, não foi capaz de sonhar. Era como se a imaginação estivesse bloqueada na realidade e a mente nada mais visse do que um apartamento nos subúrbios; a mãe, dobrada no sofá da sala, a terminar mais um vestido para uma das poucas freguesas que ainda restavam; o pai a ler a Bola ou esparramado no sofá em frente à televisão a ver futebol; a irmã achando-se superior a todos porque trabalhava numa boutique.

Nadine, terminado o liceu, apenas conseguira emprego como caixa num supermercado. Para ajudar a transcorrer cada dia, socorria-se da imaginação. Ao receber os pagamentos, deixava o pensamento voar até um dia no futuro, em que um charmoso e rico rapaz se tomaria de encantos por ela e a levaria dali, para viver numa bela casa virada para o mar, plena de criados para a servirem. Pena que esse rapaz tardasse em aparecer. A maior parte das pessoas que atendia, nem a olhavam. Seguiam no pequeno ecrã o registo de cada produto, colocavam o cartão de crédito na ranhura do terminal e aceitavam o recibo, sem nunca lhe fixar o olhar. Se lhes perguntasse de que cor era o seu cabelo, se era curto ou comprido, ou mesmo se usava óculos, ninguém saberia dizer.

– Mamã, mamã. É a Ofélia da novela.

– Não, amor. É só uma empregada de supermercado.

Aquele «É só» mexeu com ela. Como «É só»? Ela não «era só», ela «era uma». Nesse dia, saiu do supermercado decidida a fazer ver àquela gente que não se limitava a «ser só».

Toda a noite, apesar das insistentes reclamações da irmã, não apagou a luz. Ficou a escrever até os primeiros raios de sol lhe baterem na cara. Afinal, o prazo do concurso estava prestes a esgotar-se e Nadine estava decidida a vencê-lo. Sempre queria ver se, depois disso, mais alguém iria dizer que ela «era só» uma empregada de supermercado.

Tão forte determinação espantou-a a si mesma. Nunca antes lutara por nada, sempre dera tudo por perdido logo à partida e agora, estava ali, agarrada a uma luta que era bem mais do que isso. Era uma vingança por toda a invisibilidade que sempre sentira.

No dia 20 de Agosto, levantou-se bem cedo e correu para a banca dos jornais. A revista já chegara, mas ainda estava no pacote à espera que o Senhor Paulo tivesse tempo para cortar o atilho, conferir o conteúdo e colocá-la à venda.

– Vá lá, Senhor Paulo. Abra primeiro aquele pacote. Por favor!

– Ó rapariga, mas o que é que te deu para todo esse desassossego? Vá, vamos lá ver o que é que isto tem.

O coração de Nadine batia acelerado, quando folheou a revista. Paralisou. Permaneceu estática, sem conseguir pensar e sem saber o que fazer.

– Então rapariga. Tanta pressa e agora não dizes nada.

– Senhor Paulo, Senhor Paulo.

– Sim rapariga, desembucha, quem é que se divorciou, desta vez?

– Senhor Paulo, eu ganhei! – gritou, agarrando-se ao pescoço do jornaleiro. – Eu ganhei! Eu ganhei! Eu ganhei!

O homem sorriu, sem saber do que ela estava a falar. Contudo, em breve, todos tomariam conhecimento.

A viagem que recebeu como prémio foi melhor do que qualquer dos seus sonhos, porque teve um gosto de realidade. O príncipe encantado não apareceu até hoje, mas Nadine foi capa da revista no mês seguinte, e isso ninguém lhe poderá tirar.
 
Quita Miguel

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Baile
Velho ou jovem, homem ou mulher, não há quem fique longe do baile.
Exibindo alguma joia ou adorno de baixo valor, a vila bamboleia, namorando ao murmúrio da banda. É que o verdadeiro amor é vivido, ouvindo o que de melhor é idealizado.
O bombo invade o ar, ao lado do adufe e da viola.
A braguinha embala um duo, que baila em harmonia, deixando de fora qualquer amargura que lhe afogue a alma.
É o amor!

Quita Miguel

Desafio nº 78 – escrever sem C P S T

sábado, 15 de novembro de 2014


Tropeção

 
Acabou de atender a última cliente, uma mulher bonita, com um sorriso bem-disposto. «É uma boa forma de terminar o dia», pensou ao trancar a porta. Em seguida, colocou a mão na base da grade de metal e preparava-se para a puxar em direção ao solo, quando sentiu o cano frio de uma arma na nuca. A esta, seguiu-se uma pressão nas costas. Uma mão que o empurrava contra o vidro, enquanto um bafo quente lhe ordenava ao ouvido: “Abra já a porta!”

– O que disse? – perguntou Valter, fazendo um movimento para se tentar libertar, mas logo desistindo ao ouvir a ameaça:

– Ena! Quer armar-se em herói. Se fosse a si pensava melhor, com certeza, não lhe pagam para levar uma bala nos cornos.

A ideia de permitir que aquele pulha se apoderasse do que estava à sua guarda enojou-o. Contudo, o ladrão não deixava de ter razão, refletiu. A farmácia não era sua, não havia o que defender, que levasse o que quisesse. Depois veria como explicar ao patrão. Num impulso, girou um pouco a cabeça, mas logo uma coronhada o obrigou a olhar em frente.

– Vamos lá ver, então, se nos entendemos. – A voz soou com uma tal frieza que o corpo de Valter gelou.

Pelo canto do olho, viu a manga amarrotada de um casaco velho. Como demorasse a obedecer, o homem voltou a empurrá-lo contra o vidro, sempre com a mesma brutalidade. Então, decidiu deixar para depois as perguntas que lhe fervilhavam na cabeça e agir com prudência. De modo atrapalhado, procurou a chave no bolso das calças, baixou-se até que a mão chegasse perto do chão, inseriu a chave na fechadura, rodou-a e a porta abriu-se.

Uma mão agarrou-o pela gola do casaco, não permitindo que se afastasse, enquanto a outra continuava a segurar a arma que voltava a roçar-lhe a nuca. Pensou na mulher e nos filhos, que o aguardavam em casa, e temeu pela vida. Entristeceu ao reconhecer que, no fundo, não precisavam dele. Não passava de um padrão de fracasso, que, há já algum tempo, deixara de se respeitar a si mesmo. No entanto, tudo o que tivesse feito ou deixado de fazer durante a vida perdia importância perante aquela ameaça.

Sentiu que o assaltante olhava em volta, procurando algo. Seria uma pessoa conhecida que ali fosse com frequência, ou alguém que entrava pela primeira vez, aproveitando a ocasião em que a rua se encontrava deserta? Não reconhecia aquela voz.

A medo olhou o relógio. Já perdera o comboio e isso, que tantas vezes o irritara, pareceu-lhe irrelevante. De repente, um frio intenso envolveu-o, como quando algo de ruim está próximo e, de novo, foi empurrado, desta vez, em direção da porta que conduzia à outra sala. A escuridão caiu sobre si como uma onda enorme e impiedosa. Tateou em busca do interruptor, mas antes que pudesse acender a luz, uma voz gritou-lhe ao ouvido.

– O frigorífico?

Valter apontou para o canto do lado direito.

– A morfina. Toda! – exigiu o homem, fazendo-lhe sinal para que se apressasse.

Demorou algum tempo, até conseguir acalmar-se o suficiente para avançar e abrir o pequeno frigorífico. Pegou num saco com uma mão e com a outra, que não podia evitar que tremesse, retirou, com fervor, os pequenos frascos. Entregou-os ao ladrão, esperando que isso pusesse fim àquele episódio.

– Fique aqui até eu estar bem longe ou mesmo até amanhã – retorquiu o gatuno, soltando uma gargalhada.

Sem conseguir emitir qualquer som, Valter fez sinal com a cabeça de que entendera. Estava paralisado, não conseguiria dar sequer um passo. Não eram só as mãos que lhe tremiam, mas também as pernas, os braços. Todo ele tremia sem conseguir parar.

Deixou-se ficar imóvel no escuro, tentando convencer-se de que estava a salvo.

De repente, ouviu um estrondo. Assarapantado, tropeçando nas próprias pernas, Valter foi até à outra sala e olhou para a rua. Estatelado, à saída da porta, estava o assaltante que segurava ainda o saco com a morfina. Ao seu lado, resmungando, um cego que procurava a bengala, apalpando o chão.
 
Quita Miguel

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

NÃO FOSTE DORMIR?

Nada mais fácil do que ser jovem, aceitar os desafios com que a vida os brinda e prolongar os dias, noite adentro.
A música embala-lhes a alma, a conversa anima-lhes as horas, que correm velozes. Quando se dão conta, o dia decidiu ganhar a dianteira e arriscar nascer.

– Porque não te deitaste, não foste dormir? – pergunta Dália Maria com ingenuidade, enquanto a mãe, sorrindo-lhe pelo o alívio de a ter diante de si, pensa: «Nada mais difícil.»

Quita Miguel

Desafio de 77 palavras entre tabelas: começando em "Nada mais fácil" e terminando em "Nada mais difícil".

quinta-feira, 6 de novembro de 2014


DEIXANDO-SE IR
 
 
Virgínia e Wilson partiram em direções diferentes, deixando-me a indecisão de quem seguir. Não pretendia enfrentar a vida sozinha, mas também não queria ter de escolher entre um deles. Afinal, até ontem éramos inseparáveis.

Lembrei-me das vezes que abdicara dos meus sonhos para que a nossa união permanecesse indestrutível, e agora, ambos me viravam as costas e se viravam as costas. Éramos um triângulo desfeito e só havia duas formas de o consertar. Ou encontrávamos um caminho comum, ou dois teriam de abraçar o caminho do outro.
 
Segui para casa, sentindo-me uma criatura espezinhada. A cada passo, a cabeça gritava-me para seguir em frente, enquanto no coração se instalava o pânico e construía um imenso pesar. Uma legião de pensamentos revoltosos começou a ganhar uma torturante dimensão.
 
Antes de entrar em casa, cobri-me com um manto de indiferença para ocultar a dor. Não iria dar à minha mãe o gosto de me atirar à cara: «Estás a ver como eu tinha razão. Tenho sempre. Fartei-me de te avisar que não devias ser dependente de amizades. Ninguém é confiável. Quando menos esperas, viram-te as costas. Agora, talvez me dês razão.»
 
Não, não lhe ia dar esse gosto. No entanto, no íntimo, não posso deixar de reconhecer que ela não está de todo errada, só não gosto que se vanglorie, fazendo-me sentir cravejada de espinhos. Sei que me deixei emaranhar numa teia tecida de linha podre, da qual não sei como sair.
 
Sou uma criatura simples que se comove com facilidade, uma sonhadora que se perde nas nuvens, um ser que se abraça às árvores. Como posso pensar seguir arquitetura ou design industrial? Eu converso com a natureza, construo sonhos coloridos, mas Virgínia ou Wilson não precisam de sonhar para se sentirem vivos.
 
– Não… não. Desta vez, não vou ceder – afirmo diante do espelho, numa tentativa de me autoconvencer, apesar da cratera que se abre no meu peito.
 
Que motivo tenho eu para abdicar de mim, pergunto-me ao longo do dia, enquanto tento colar os cacos em que o meu coração se transformou. Uma ligeira batida na porta do quarto apanha-me desprevenida e quando a porta de abre, ainda limpo as lágrimas.
 
– Então, já disseste à tua mãe que vamos para arquitetura? – pergunta Virgínia, que sem cerimónias se atira para cima da cama.
 
Olho para o chão, porque não tenho coragem de a encarar e, numa tentativa de afogar as palavras que se recusam a sair, bebo diretamente do gargalo da garrafa de água que tenho sempre à cabeceira da cama. Depois penso: «Talvez arquitetura não seja tão mau assim. Posso criar jardins internos ou envolvendo os edifícios. A dificuldade pode estimular-me a imaginação e dar-me o ponto de partida para criar novas soluções. E depois, posso sempre dedicar-me ao meu jardim nos tempos livres. É! Talvez arquitetura não seja uma má ideia.»
 
Por volta das oito e meia saímos, às nove estamos diante da casa de Wilson.
 
– Gosto muito de vos ver – diz ele, convidando-nos a entrar.
 
Enquanto eles falam, eu distraio-me com os meus pensamentos, imaginando-me daí a alguns anos, depois de ter concluído o curso na Universidade, com louvor, claro, porque quando me meto numa coisa é para ser uma das melhores.
 
– Achas que temos uma vida privilegiada? – Oiço Virgínia perguntar, com o ar provocatório que gosta de usar, e estico o ouvido na direção deles.
 
– Privilegiada, não! Se temos várias hipóteses de escolha é porque somos bons. – Wilson sempre se achou com direito a tudo e nunca se deixa perturbar pelas tentativas de Virgínia para o arreliar.
 
Os argumentos prosseguem por mais algum tempo, e percebo que ela está quase a convencê-lo a mudar de ideias, e que arquitetura é, cada vez mais, uma realidade possível.
 
Releio o meu coração e sinto-me enojada com a minha fraqueza. De repente, tudo fica turvo.
 
Reabro os olhos a tempo de ver o médico a sair. A enfermeira, com um sorriso no rosto, dá-me a boa notícia de que fora apenas uma queda de tensão. Se ela soubesse a tensão em que a minha vida se transformou, compreenderia o quanto está errada.
 
Os meus pais arrastam-me até casa enquanto, a cada trinta segundos, me pergunto: «Porquê? Porque é que não consigo ser eu mesma?»
 
– Já sei que escolheram arquitetura – oiço o meu pai dizer, olhando-me pelo retrovisor.
 
– O quê? – pergunto de forma automática.
 
– Não imaginas como fiquei orgulhoso com a tua escolha. Estou contente por o bom senso ter tomando conta da tua cabeça, esqueceres essa ideia absurda de paisagismo e seguires as minhas pegadas.
 
Engulo em seco e emudeço de novo. Como posso trair as expetativas do meu pai?
 
Encolho-me no banco e penso: «Quem sabe, quando festejar o meu décimo oitavo aniversário, ganho coragem para ser eu?!»
 
Quita Miguel
 
 
 

quinta-feira, 30 de outubro de 2014


Quantas? Quantas?

«Ideia de doidos» diriam alguns. «Impossível» pensariam outros.

Escrever com limite de palavras e ainda por cima com regras: não pode fazer isto ou aquilo; tem de fazer assim ou assado.

– Quantas palavras tem de ter o texto? Quantas? – pergunta alguém acabado de chegar, pronto a arriscar a sorte.

E lá vamos, construído um texto após outro, permitindo que as 77 palavas nos entrem na pele e nos viciem. Mas, não se preocupem. É um vício bom!

Quita Miguel

Desafio nº 77 – texto sobre o blogue 77 palavras

quinta-feira, 23 de outubro de 2014


LADRÃO DE SONHOS


( conto com que participei no concurso «Receitas Secretas».)

Os habitantes de Tènanrev andavam com umas olheiras de meter medo ao mais corajoso dos mortais. Há várias semanas, que não conseguiam sonhar ou, pelo menos, não se recordavam de o fazer, e as suas almas ressentiam-se, mostrando-se famintas de fantasias.

Não escalavam mais os montes cobertos de oiro erguidos para o céu, nem se deitavam à sombra de árvores de safiras, nem se banhavam em rios ladeados de rubis.

Reunido o Conselho, Pantiei assumiu o comando, pondo fim ao burburinho que se instalara:

– Vamos lá ver, têm de entender uma coisa: há que agir! São os sonhos que alimentam as nossas almas. Sem eles, definhamos e acabamos por perecer.

– Quer dizer que se não sonharmos morremos? – Atmia, o mais jovem dos conselheiros, ria perante ideia tão absurda.

Como é que o sonho podia ter tamanho poder? E alma? Até agora, ninguém provara a sua existência e, muito menos, que precisava de mantimento.

– A noite foi criada para que a alma pudesse nutrir-se, e isso é feito através dos sonhos – esclareceu Pantiei com a convicção que a idade lhe dava.

– Pensei que fosse por existir um movimento de rotação – argumentou Atmia mordaz.

– Tamanha ignorância sobre o conhecimento ancestral da tua raça é mesmo de fazer dó. Contudo, se quiseres aprender és bem-vindo, caso contrário podes sair, há, com certeza, alguém disposto a ocupar o teu lugar.

– Não se irrite, vá lá. Eu só… – O olhar duro de todos os conselheiros afogou-lhe a palavra.

Atmia ainda vacilou perante a discussão do caminho a seguir e quase se levantou para argumentar que não caberia a miúdos de sete anos missão tão arriscada, mas permaneceu sentado. Votou a favor, e foi tudo.

 

– Vamos mais depressa! – Shaktiá andava sempre acelerada.

– Tá! – respondeu Raiel, apurando o ouvido para detetar os ruídos no interior da fortaleza, ao mesmo tempo que tentava focar o olhar. – Pantiei disse que há uma passagem secreta por aqui, mas não vejo nada.

Continuaram a gatinhar naquele túnel apertado até que um estrondo os sobressaltou.

– Devemos estar a passar por baixo do terminal das vertijonaves, a passagem deve ser por aqui. Procura qualquer coisa do lado direito, que eu tendo do esquerdo. – Shaktiá percorria cada centímetro de parede com os dedos frágeis, ao mesmo tempo que tentava conter o espirro, que ameaçava soltar-se a qualquer instante.

Escondida atrás duma saliência, Raiel encontrou uma pequena argola, enfiou o dedo e puxou. O inesperado aconteceu: o chão abriu-se, engolindo os gémeos. Foi impossível evitar o grito, enquanto escorregavam por uma descida que parecia não ter fim.

Um splash violento pôs termo à viagem.  Aquilo não fora boa ideia. Agora, para além de perdidos, estavam encharcados e, pior que tudo, a sobrevivência de Tènanrev dependia deles.

– Não resolvemos nada, ficando aqui à espera de um milagre. – Shaktiá despiu-se, torceu a roupa e, com um arrepio, voltou a vesti-la.

Raiel imitou-a.

Olharam em volta em busca de direção. Tudo parecia igual. Foi então que suou algo parecido com uma gargalhada longínqua.

Foram andando, sem fazer barulho, até que a luz tremeluzente de uma fogueira lhes revelou a presença do ladrão de sonhos. Era um vulto enorme, de cabelos longos, sentado diante de um imenso ecrã preenchido com os sonhos aprisionados, que se repetiam de modo incessante. Ele olhava-os hipnotizado e, de vez em quando, ria.

Recordaram as palavras de Pantiei: «Encastrado num tronco de uma árvore milenar, vão encontrar o Livro da Essência Onírica. Aí está a receita que permitirá anular o feitiço. Mas, atenção! Não podem retirar o livro, porque tudo se desmoronará.»

– Agora é que estamos tramados. Olha para ali. – Raiel apontava para a clareira.

Bem no centro, estava a árvore. Como passar pelo bandido?

– Só há uma solução. Eu distraio-o e tu esgueiras-te até lá. – Mal Shaktiá acabara a frase e já saltava a poucos metros do malfeitor. – Hei ladrãozito, estás a divertir-te?

O monstro, de pernas enferrujadas por falta de exercício, levou tempo a levantar-se. O esforço de cada passo era tal que quase desistiu. Contudo, Shaktiá insistia na provocação, na tentativa de o afastar da árvore milenar, e o grandalhão, vaidoso do seu poder, não iria permitir que um ser minúsculo o desafiasse. Devagar, foi-se arrastando na sua perseguição.

– Gostas de festas? Anda que vamos dançar ou será que os quilitos a mais não te deixam mexer? – espicaçava a miúda.

Assim que o homenzarrão se afastou, Raiel aproximou-se do tronco onde repousava o Livro da Essência Onírica. Só então, quando se preparava para o abrir, reparou que as mãos estavam a tremer.

– Ó mamã, ó guias, anjos e arcanjos, protegei-me nesta hora – disse, fechando os olhos e colocando as mãos sobre a capa de madeira talhada. – Livro de todos os saberes e de todas as verdades, revelai-me a secreta receita de libertação dos sonhos. 

Continuou, proferindo as palavras que Pantiei lhe havia ensinado, colocando nelas toda a convicção e fé.

Deixou que os dedos escolhessem o momento de abrir o livro, e quando este se descerrou, revelou-se um folclore de cores e cheiros.

Imagens ganhavam vida, desprendiam-se do interior do livro e dançavam diante dos olhos de Raiel. Fascinado, o rapaz fixava cada detalhe da receita que de materializava na sua frente. Quando tudo terminou, o livro fechou-se e como que por magia o jovem despertou bem no centro da cidade, onde todos aguardavam por algo que os libertasse daquele marasmo cruel.

 

– É isto aqui? – perguntou Atmia, com a boca seca e com dificuldade em articular as palavras.

Para se redimir, oferecera-se para recolher um dos ingredientes, mas não pensara que isso o levasse tão longe.

Recebendo as sementes da rosa-do-deserto, Raiel aproximou-se do caldeirão onde o leite de amêndoas doces fervia, sob as chamas intensas da fogueira.

Quando Pantiei se aproximou, Raiel perguntou-lhe:

– Acha que esta poção também libertará a minha irmã?

– É claro que sim, mas teremos de a encontrar para que ela a possa beber.

O rapaz procurou afastar da mente as imagens do ladrão perseguindo Shaktiá. Se a queria ajudar, era necessário que se concentrasse na receita.

Recontou as sementes. Teriam de ser 77 de cada espécie. Em seguida, confirmou que no seu bolso permanecia o ingrediente secreto. Então, respirou fundo e deu início à invocação:

– Distenksyon, pai de todos nós, invocamos o teu nome para que nos auxilies na libertação dos nossos sonhos. Entregamos-te as sementes de Drosera para que a generosidade sempre habite o nosso coração, as sementes de Lophophora para que a temperança nos guie, as sementes de pachycau para que a ética nunca nos abandone e as sementes de lótus para que o amor seja o nosso alicerce.

Em seguida, Raiel pegou um punhado de incenso e atirou-o para a fogueira, fazendo com que o ambiente se perfumasse, e, aproveitando a distração de todos, retirou do bolso a pequena flor e murmurou:

– Distenksyon, ofereço-to a flor da árvore dos saberes, para que nos concedas a magia da libertação.

Quando a flor foi adicionada ao cozinhado, produziu-se uma explosão que a todos deixou sem voz. Porém, bastaram apenas alguns segundos para que um rumor se fizesse ouvir, quando um duende surgiu do interior do caldeirão e declarou:

– Tendes perante vós a bebida mágica que vos tornará imunes ao roubo de sonhos. Cada um deverá tomar uma colher de sopa, mas terá de o fazer durante a próxima hora. Depois, a poção perderá o seu efeito.

O atropelo foi tão grande quanto o anseio por ter os sonhos de volta.

Pantiei aproximou-se de Raiel, que sobressaltado observava o assalto ao caldeirão, e entregou-lhe um pequeno frasco, dizendo:

– Bebe a tua parte e vai em busca da tua irmã. Recorda-te de que tens apenas três quartos de hora.

O facto de serem gémeos, deveria facilitar as coisas, pensou Raiel. Se conseguisse estar tranquilo poderia sentir a irmã, o problema é que era-lhe impossível encontrar serenidade com os minutos a escassearem.

Foi até à unidade central da fortaleza, percorreu o túnel e aceitou o novo splash sem se demorar sequer a torcer a roupa.

Correu, esperando que o estivesse a fazer na direção certa. Haviam passado mais de dez minutos quando ouviu:

– Ainda acha que me apanha, senhor ladrãozito? Ups! – Shaktiá deixou que um pé se enfiasse num ramo, acionando uma armadilha.

O ladrão, ao vê-la pendurada de cabeça para baixo no tronco da árvore, parou para recuperar o fôlego e soltar uma gargalhada.

Raiel percebeu que o tempo disponível se reduzira, porque agora ele teria de salvar a irmã antes que o monstro se aproximasse. Foi gerindo a corrida, procurando evitar qualquer ruído, consciente de que a surpresa jogaria a seu favor.

Do cimo da árvore, Shaktiá viu o irmão aproximar-se e mudou de estratégia:

– Hei, grandalhão! Apressa lá o passo para me tirares daqui. A vista é bonita, mas já estou cansada de estar de cabeça para baixo.

Funcionara. O monstro parava e observava-a com um sorriso na carranca. Ia deixá-la sentir-se como uma jabuticaba durante mais alguns minutos.

Raiel aproveitou para atar uma trepadeira entre duas árvores a um palmo do chão. Depois começou a falar com a irmã como se o ladrão não existisse:

– A mãe mandou-me vir trazer-te o antidoto para o feitiço – disse, mostrando-lhe o pequeno frasco –, mas não sei se tu o mereces.

– Dá-mo! Dá-mo! – implorou Shaktiá.

– Não sei, lembras-te daquela vez que me acusaste de copiar o trabalho? Isto para não falar das inúmeras vezes que te escondes no momento de levantar a mesa. Acho que não mereces. É melhor que fiques sem sonhar por um bom tempo.

– Não, por favor. Eu prometo levantar a mesa e arrumar o quarto durante dez luas. Vá lá, dá-me isso.

Acreditando que as crianças se haviam esquecido dele, o monstro foi-se aproximando de Raiel. Mais um passo e agarro-o, pensava. Só que esse passo a mais foi a sua desgraça. Os pés embaralharam-se na trepadeira e a terra estremeceu quando o seu corpanzil se estatelou no chão.

O rapaz não perdeu tempo, correu em direção à irmã e atirou-lhe o frasco, que ela se apressou a desenrolhar:

– Argh! Isto sabe mesmo mal.

– Só tu para te preocupares com o sabor – comentou o irmão, enquanto amarinhava pela árvore e lhe soltava o pé. – Vamos depressa, temos de ir até à árvore milenar. Só ela nos pode fazer regressar.

Quando chegaram á clareira, viram os sonhos a desaparecer do imenso ecrã, até este ficar completamente branco. A poção funcionara.

– Anda! – Raiel puxou a irmã pela mão e conduziu-a ao Livro da Essência Onírica.

– E agora?

– Não sei – confessou o miúdo.

– Não te armes em parvo. Já prometi que arrumo tudo.

Um grito de raiva rasgara o ar. O ladrão conseguira levantar-se e, verificando que a presa desaparecera, demonstrava toda a fúria.

Os gémeos precisavam agir depressa ou acabariam entre as suas garras.

Raiel decidiu deixar que a intuição o guiasse. Colocou uma mão sobre o chakra cardíaco e outra sobre o livro e permitiu que as palavras brotassem:

– Pelo poder que deténs, te peço que nos devolvas ao povo de Tènanrev.

Passos pesados ressoavam, revelando que o monstro se encontrava cada vez mais próximo. Raiel procurava ouvir o seu coração, mas o medo dificultava a busca da palavra certa. Naquele momento, um berro dilacerou-lhe os ouvidos. O urro desesperado do ladrão, ao ver que os sonhos haviam desaparecido, fez o chão tremer e, por isso, ou porque o espírito da árvore ancestral se compadeceu deles, os miúdos foram sugados, aterrando de forma atrapalhada aos pés de Pantiel, o único que os aguardava acordado.

Quita Miguel