quinta-feira, 30 de janeiro de 2014


Gémeos?

Não estremeceu, porque não chamaram o seu nome. Não sabia nada sobre o assunto. Não tivera tempo de estudar. Também não respirou fundo. Não sabia se não mudariam de ideias.

Seria que não podia sair com passo miudinho? Se o irmão não estivesse de sentinela…

Olhou-o. Não podia contar com ele. Isso também não era novidade.

Não sabia porque ainda se admirava. Tão diferentes, até parecia que não eram irmãos e gémeos. Seria que eram? Ou não?

Quita Miguel

Desafio nº 59 em 77 palavras: incluir 14 vezes a palavra não.

domingo, 26 de janeiro de 2014


A REVOLTA DOS PINCÉIS

 
Afastou-se um pouco e observou com olhar crítico. Hum… Pequenos pormenores e ficaria perfeito. O sol começava a descer no horizonte. Sentia-se cansado, era hora de regressar a casa. Fechou a janela, desceu o estore e dirigiu-se para a porta, deixando o atelier mergulhado na escuridão. O som dos passos, em direção ao elevador, foi diminuindo até desaparecer por completo.

Por algum tempo, o silêncio foi absoluto, até que, se ouviu um desabafo:

– Não posso mais! Tenham paciência, mas não posso mais.

Um burburinho denunciou a agitação que se instalava. 

– Cobardes, vocês são todos uns cobardes. Ele decide tudo: tema, cores, luz, e vocês obedecem apáticos, como se não fosse também obra vossa.

O alvoroço aumentou, e a luz, curiosa, acendeu-se. Quem barafustava daquela maneira? O Pincel nº 4, quem mais... Era um dos mais utilizados, por isso, achava-se no direito de dizer de sua justiça. Todos falavam agora entre dentes, mas ninguém o interpelava com frontalidade.

– Estes temas estão a dar comigo em doido. Ou é a guerra, ou o desgraçadinho que vive na rua, ou o menino que não tem o que comer. Mas este homem não tem nada de positivo para mostrar? Que tal um romântico pôr-do-sol? Lamechas? Talvez seja, mas pelo menos é bonito. Estou farto que se sirva de mim para pintar a preto e cinzento. Eu quero é cores quentes, que vibrem e façam vibrar quem contemplar o quadro.

– Acho que tens razão – disse, por fim, o vermelho. – Estou quase novo. Já nem me lembro quando foi a última vez que ele me destapou.

– Eu pelo contrário estou quase no fim e vivi tão pouco. Não há dia em que ele não me esprema – lamentou-se o preto.

A pouco e pouco, muitos foram manifestando a sua opinião. A luz observava de cima sem intervir, mas olhando para o quadro, dava-lhes razão. Lá estava um menino desgrenhado, de olhar triste e roupas esfarrapadas que, de mão estendida, pedia ajuda a quem passava.

– E se mudássemos o quadro? – perguntou de supetão o Pincel nº 1, que até ao momento se limitara a ouvir.

O silêncio foi imediato. Até então ninguém pensara em agir, só mesmo em criticar, protestar e barafustar. E se fosse esse o caminho? Era possível que o que faltasse fosse apresentar ao pintor uma outra visão da realidade, uma nova perspetiva de encarar a vida, uma diferente forma de sentir.

– Bem, eu por mim estou de acordo – declarou o Pincel nº 4.

– Eu também – respondeu o vermelho, e um após o outro, todos foram dando a sua concordância.

– Hei. Esperem lá. Então e eu não tenho uma palavra a dizer? – interveio o quadro, um tanto irritado. Afinal, era dele que falavam. Não bastava dizerem mal, ainda o queriam mudar. – Eu sou o produto da criatividade de alguém, o que vocês querem fazer é crime. Vocês vão adulterar uma obra de arte. Hei! Que é isso? O que é que estão a fazer? Porque me estão a mudar a roupa?

De nada servia toda aquela oposição. Os pincéis e as tintas trabalhavam em conjunto. Vestiam-no de jeans e T-Shirt vermelha, pintavam um lindo céu azul e colocavam-lhe uma borboleta docemente poisada na mão aberta. Na cara desenhavam-lhe um sorriso e davam-lhe brilho aos olhos. O chão negro era agora de relva verdejante com flores, que o situavam numa primavera harmoniosa.

– Agora sim, agora é um quadro que me orgulho de ter pintado – afirmou o Pincel nº 4.

– Não é só obra tua, é minha também – reclamaram em coro os restantes.

Era, com efeito, uma obra de quase todos. O preto ficara de fora, mas não se importara, soubera-lhe bem o descanso.

De repente, ouviram a chave rodar na porta. Ah não! Não se haviam dado conta das horas e tudo aquilo estava um caos. Petrificados, prepararam-se para o pior. Nem a luz, com o susto, conseguiu ter qualquer reação e permaneceu acesa.

– Mas que revolução é esta? O que é que se passa aqui? – O pintor falava alto, sem conseguir compreender o que acontecera.

Via pincéis espalhados, tubos de tinta abertos, a paleta suja. A primeira reação foi pensar que havia sido alvo de um assalto, mas mirando em volta, verificou que nada faltava. Só nesse momento, os olhos pousaram no quadro.

– O que é isto? Quem se atreveu a entrar aqui só para destruir a minha obra?

– Atchim! – O amarelo, que era muito sensível e não podia estar aberto por muito tempo, não conseguira evitar o espirro.

O pintor percebeu então o que sucedera.

– Com que então, isto é uma revolta! Deixem estar, que dou já um jeito neste atentado à pintura.

Lançou mão do preto e espremeu-o até à última gota. Molhou o pincel e decidido, dirigiu-se para o cavalete. Olhou o quadro, observando cada detalhe. Era a primeira vez que o fazia, desde que entrara. Ficou ali, analisando cada pincelada, com o Nº 2 pronto a intervir a qualquer momento.

Com leveza, a curvatura da boca foi mudando de sentido e um sorriso começou a relevar-se no rosto. Decidido, avançou para o quadro e nele colocou o seu nome.

Quita Miguel

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014


A Tremer


Tremeu, imobilizando-se frente ao espelho. Ruborizou, susteve a respiração e uniu a frente da blusa cor de caramelo. Maldito botão que ousara expô-la.
 
Quis dar um pontapé aos que riam, gritar-lhes impropérios, xingá-los. Mas nem murmurou, deixando levedar a vergonha. Se tivesse um buraco onde se enterrar. Porque não dispersavam?
 
Fugiu em ziguezague, buscando a saída. Só parou junto dos nenúfares onde os miúdos jogavam. Então verteu algumas lágrimas, por sentir que não havia quem a amasse.
___________

Desafio em 77 palavras com obrigatoriedade de usar pelo menos uma palavra por letra das indicadas no seguinte quadro:


A – abelha, armar
B – botão, borrifar
C – caramelo, carburar
D – doutor, dispersar
E – entulho, enterrar
F – falésia, fugir
G – galardão, gritar
H – hipótese, haver
I – ilíaco, imobilizar
J – jacaré, jogar
L – livro, levedar
M – mármore, murmurar
N – nenúfar, notificar
O – ovo, ousar
P – pontapé, pronunciar
Q – queijo, querer
R – ruminante, ruborizar
S – sistema, suster
T – trabalho, tremer
U – unha, unir
V – vela, verter
X – xisto, xingar
Z – ziguezague, zurrar
J

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014


Uma demão de tinta

 
– Hoje temos a sobremesa favorita do avô! – anunciou a mãe com o sorriso dos dias felizes.

– E a minha também – declarou Carlos, colocando-se de joelhos na cadeira e estendendo o prato, na esperança de ter prioridade na distribuição do bolo.

Claro que a sorte não esteve do seu lado. «Primeiro os mais velhos», a mãe sempre dizia. Teria de esperar. Ficou ali, de prato em riste, até que uma fatia do bolo de chocolate deslizou na sua direção. Estava uma delícia, como sempre, pena a mãe não o fazer mais vezes. Havia um problema qualquer de calorias, ele nunca percebera bem o quê, mas isso também pouco lhe interessava. O importante era que, em certas ocasiões, a mãe se esquecia daquela ameaça invisível e produzia a sua obra-prima.

– Vá lá, toca a lavar os dentes.

Como os adultos conseguem ser chatos. Porquê tirar já aquele gostinho tão bom? Mas, fazer o quê? Sabia que de nada serviria refilar. Se o fizesse, corria o risco de ficar sem sobremesa ao jantar. Então, engoliu a reclamação e correu para a casa de banho. Depois, teria toda a tarde para brincar. Como era bom estar de férias, melhor ainda quando os pais também estavam. Apesar de, por vezes, serem uns melgas, gostava quando estavam todos juntos.

– Papá, queres tentar bater-me no novo jogo?

– Tarefa impossível, mas vamos lá… – resignou-se o pai, consciente de que iria levar uma abada.

– E tu vôzinho, não queres ver a tareia que vou dar ao papá?

– Não meu amor. Afinal, que há de novo nisso? – respondeu o velho rindo, enquanto vestia o sobretudo. – Depois de um almoço como este, preciso de andar um pouco.

Agasalhou-se e saiu. Apesar do frio, o céu azul, pintado com algumas nuvens ligeiras, convidava a um passeio à beira-mar. Puxou a gola para cima, colocou as mãos nos bolsos e fez-se ao vento. Já não havia a quem dar as mãos, de modo que deixara de usar luvas. A mulher não o acompanhava mais, e o neto já se achava demasiado crescido.

Alguns temerários, como ele, passeavam-se pelo paredão, percorrendo a pé os quilómetros que ligavam Cascais ao Estoril. Outros preferiam a bicicleta ou os patins em linha. Gostava de patins em linha, achavas-lhes uma certa piada. Se fosse mais novo…, mas na sua idade qualquer queda poderia detonar uma avalanche de consequências. Não pretendia arriscar. Talvez o Carlitos um dia se entusiasmasse. No próximo aniversário, era capaz de lhe oferecer, não asas, mas rodas para os pés.

Começou a sentir cansaço e invejou o tempo em que as pernas colaboravam sem olhar para o relógio. Inverteu a marcha e iniciou o caminho de regresso.

Como não lhe apetecia fechar-se em casa, foi sentar-se no jardim frente ao mar, deixando-se embalar pelo sussurro das ondas a alongarem-se na praia. Era um lugar que ajudava a pensar. Fora naquele banco que, ao longo da vida, fizera planos, procurara soluções, rira e deixara cair até uma ou outra lágrima. Era o banco mágico, que ele e a mulher haviam construído e onde encontravam sempre a resposta para qualquer indecisão.

Ela desenhara-o, queria-o diferente de qualquer outro. Ele comprara e cortara a madeira, e ambos o haviam montado e pintado naquela cor forte. «Cor de vida», dissera ela.

Estava a precisar de uma nova demão, talvez a filha o pudesse ajudar. Não que a tarefa fosse árdua, mas o trabalho adquiria outro prazer e significado se feito a quatro mãos.

– Brrr…. que frio. Acompanhas-me num cacau quente? – perguntou a filha, sentando-se ao seu lado e estendendo-lhe a caneca fumegante. – Sabia que te ia encontrar aqui.

Como era bom sentir as mãos aquecerem em torno da caneca.

– Olha ali! Estás a ver aquele gigante? Vê bem se não é assim que podemos imaginar Golias? – O velho apontava as nuvens que deslizavam no céu. – Passei muitas horas com a tua mãe aqui sentado, vendo figuras formarem-se e transformarem-se, umas dando lugar a outras e outras e outras...

– Coisa de artista, eu acho!

– Talvez. É bem possível que o olhar de um artista esteja mais disponível para espelhar a imaginação. A tua mãe ensinou-me a olhar o mundo com os olhos da beleza. Colocava o cavalete aqui, bem em frente, e eu ficava a admirá-la, vendo os traços transformarem-se em seres que ganhavam vida, em paisagens que nos convidavam a entrar, em cores que nos envolviam e nos faziam acreditar que tudo é maravilhoso. Acho mesmo que a tua mãe nunca pintou um quadro triste, melancólico talvez, mas triste não.

– A mãe amava a vida e essa era a sua grande força. Por mais difícil que parecesse a situação ela sempre dizia: «Isto está a acontecer porque tenho algo a aprender, se estiver atenta saberei o quê.» A mãe era uma dessas pessoas que nunca deveria morrer.

– E não morreu, podes estar certa!

O pai pegou na mão da filha e beijou-a. A mãe vivia através dela, através do neto, através dos quadros que pintara e através daquele banco, que ambos haviam construído e que agora precisava de uma demão de tinta.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014


A PRETO E BRANCO

Dois dias após a mudança, a casa permanece um labirinto de caixas. Dizem que as mudanças são boas para colocarmos ordem na vida e jogar no lixo metade das inutilidades que nos perseguem. Comigo não funciona. Admiro cada objeto com os olhos da memória. Todos eles contam um pouco da minha vida.

Olha este baú! Há quanto tempo não o abro. Afago-o, sinto a madeira gasta pelo tempo e, antes de levantar a tampa, sirvo-me de mais chá. Com todo o tempo que não tenho, abro-o e é uma avalanche de passado que me absorve.

Fotos a preto e branco, daquelas que só quando eram reveladas, sabíamos se o fotógrafo se portara a contento. Passo uma a uma. Podia talvez colocá-las num álbum. E o espaço? Sempre o espaço. Afasto uma caixa para ganhar um mais pouco de sofá e de conforto.

Demoro-me numa em especial. A minha avó e os dedos ágeis que, sem medo da agulha que mordia a grande velocidade, costurava quase para toda a vila. As pernas, já cansadas, mostravam-se ligeiras no pedal da máquina de costura. Gostava de a observar. Seguia cada movimento com olhar atento, pensando: «a minha avó é uma artista».

Parece que naquela altura se envelhecia mais, mas mais devagar. Quando terminava uma costura, colocava-me no colo e dizia-me: «Um dia ensino-te.»

 

domingo, 12 de janeiro de 2014

Cocas Sofia

As horas prosseguiram com embrulhos, filhós, decorações e histórias de

natais anteriores.


«É impossível que tudo fique pronto a tempo», pensei ao ser requisitada

para ajudar na maior parte das tarefas.

A meia-noite soou, e o ritual mais esperado teve início.

Rasgou-se papel, soltaram-se gargalhadas, brindou-se em família.

Depois dos presentes abertos, a minha mãe surgiu com outra caixa. De

dentro dela espreitava a Cocas Sofia, a cadelinha que acompanharia o

meu percurso para a idade adulta.
 
 
Desafio Rádio Sim nº 9 – A melhor prenda que recebemos na nossa vida
(não precisa de ser material, pode ser emocional)

terça-feira, 7 de janeiro de 2014


Martinha


Desafio: Incluir no texto de 77 palavras a frase: «Era uma criança parruda e baixinha, de cara divertida.», livro Azul-corvo de Adriana Lisboa.

 

Quando regressei à aldeia de onde partira, havia tantos anos que lhes perdera a conta, a primeira pessoa que vi fez-me retornar aos tempos de infância em que corríamos pelos cantos até o sol se esconder atrás das colinas.

Era como se a Martinha, amiga inseparável que fizera as vezes da irmã que nunca tive, estivesse ali. 

Era uma criança parruda e baixinha, de cara divertida. Chamava-se Marta como a mãe e, como ela, percorria as colinas.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014


O PAÍS DOS LAMPIÕES

 
Bem no interior da Floresta do Silêncio situava-se o País dos Lampiões. A ele se acedia por uma imensa escadaria de pedra rosada, guardada por um anjo, que com o poder da invisibilidade mantinha aquele lugar mágico, à devida distância dos humanos.


Ali, os lampiões viviam em plena liberdade, brilhando em todos os tons e em qualquer horário. Verdadeiros festivais de cor flutuavam até aos céus, num eterno ondular de energia. Desde os mais pequenos e menos brilhantes, às enormes luzes hexagonais, todos detinham o seu lugar na orquestra colorida.

No início de cada anoitecer, os animais sentavam-se ao redor da Clareira do Pinheiros, deliciando-se com o espectáculo de luz e cor sempre igual, mas sempre diferente, porque o maestro era a energia que de todos emanava, exprimindo através da luz, os sentimentos mais íntimos de cada um.

Durante décadas esta rotina se repetiu a cada dia, e uns anjos após os outros, todos cumpriram no percurso de evolução, o papel de guardião do País dos Lampiões.

Naquele dia de final de Outubro, o tempo estava quente, e a noite convidava a um passeio ao ar livre. Alguns anjos reuniam-se no bar da nuvem 808 para esticar um pouco as asas e refrescar as penas. Ali se contavam histórias do mundo da luz e se saboreava o batido de neve, com uma pitada de raio, que o anjo Juvenildo criara há cerca de um século.

O tema de conserva dessa noite era o tempo, e a boa disposição e serenidade a dominante do ambiente, até o anjo Pendular, após percorrer com o olhar tudo em redor, perguntar:

– E por falar na mudança da hora, quem é que está agora como guardião do País dos Lampiões?

Fez-se um silêncio sepulcral. Os anjos Rufino e Virgílio olharam-se sem acreditar no que viam. Se eles os dois estavam ali, quem guardava o País dos Lampiões?

– Mas, era você que devia estar de guarda! – afirmou Rufino.

– Como assim? O seu turno ainda não acabou, o tempo retrocedeu uma hora – rebateu Virgílio peremptório.

– Sim, mas essa hora não é minha, é sua.

– Como minha?

– Basta! – gritou o anjo Pendular, dando um murro na mesa. – Vão de imediato para o posto de vigia e rezem para que tudo continue nos seus devidos lugares.

Tarde demais. Os humanos subiam já os degraus e alcançavam o patamar, donde vislumbravam um brilho de luzes de todas as dimensões, cores, formas e cintilações. Alguns permaneciam boquiabertos perante tão inédito espectáculo, outros porém corriam estrada fora aproximando-se das primeiras luzes. Com um cuidado receoso tocaram-lhes, verificando que se mexiam como se tivessem vida própria, que se afastavam e fugiam deles, mas nunca deixando de brilhar.

«Uma luz daquelas valia bom dinheiro, se a conseguisse agarrar», pensavam alguns. E logo começaram a imaginar como poderiam capturar a luz. Procurar agarrá-la com as mãos de nada servia, pois era demasiado ágil e escapava-se-lhes entre os dedos, mudando de forma. O que primeiro fora uma estrela, era agora uma esfera, para logo em seguida se transmutar num polígono ou numa borboleta.

Os anjos observavam sem poder interferir. Aquele deixara de ser um lugar mágico. Ao ser invadido pelos humanos, saíra do seu círculo de actuação e não podiam senão lamentar o erro irreparável que haviam cometido. Somente a saída voluntária dos humanos lhes retornaria o poder de domínio sobre aquelas terras, mas isso não parecia provável.

 As luzes brilhavam cada vez com maior intensidade, tal era o terror que sentiam, e esse brilho atraía ainda mais os humanos, que idealizavam já armadilhas para as resgatarem.

– Temos de fazer alguma coisa – disse o dinossauro escondido atrás da enorme rocha que ladeava a cachoeira. Tinha os pés molhados há já muito tempo e isso incomodava-o, mas a sua dimensão não lhe permitia ocultar-se noutro lugar.

– Sim. Mas o que é que podemos fazer? – perguntou a hiena, rindo sem saber porquê.

As cabeças mais pensadoras do reino animal trabalhavam em uníssono, procurando a solução. Por fim, o leão bocejou, espreguiçou-se com languidez e disse:

– É bem simples. – Todos o olharam incrédulos. – Basta aí o grandalhão fazer uma aparição, dar um dos seus belos grunhidos e correr na direcção deles. Verão como saem mais depressa do que entraram.

Valia a pena tentar. Assim como assim, ninguém conseguira ter uma ideia melhor. O dinossauro respirou fundo, afastou o cabelo dos olhos e aprumou-se. Depois ganhou fôlego e num único salto apareceu bem no meio da Clareira dos Pinheiros, soltando um grito gutural.

Atropelando-se uns aos outros, os humanos corriam lívidos pela ladeira que conduzia à escadaria, logo descendo sem sequer olhar para trás.

À saída do último dos humanos, os anjos Rufino e Virgílio apressaram-se a utilizar os poderes para tornarem, de novo, aquele lugar invisível.

Já na cidade, os homens contaram a grande descoberta e muitos grupos voltaram em busca de tão grande tesouro, mas nunca mais conseguiram descortinar a entrada do País dos Lampiões.

Quita Miguel