Afastou-se
um pouco e observou com olhar crítico. Hum… Pequenos pormenores e ficaria
perfeito. O sol começava a descer no horizonte. Sentia-se cansado, era hora de
regressar a casa. Fechou a janela, desceu o estore e dirigiu-se para a porta,
deixando o atelier mergulhado na escuridão.
O som dos passos, em direção ao elevador, foi diminuindo até desaparecer por
completo.
Por algum
tempo, o silêncio foi absoluto, até que, se ouviu um desabafo:
– Não posso
mais! Tenham paciência, mas não posso mais.
Um
burburinho denunciou a agitação que se instalava.
– Cobardes,
vocês são todos uns cobardes. Ele decide tudo: tema, cores, luz, e vocês
obedecem apáticos, como se não fosse também obra vossa.
O alvoroço
aumentou, e a luz, curiosa, acendeu-se. Quem barafustava daquela maneira? O
Pincel nº 4, quem mais... Era um dos mais utilizados, por isso, achava-se no
direito de dizer de sua justiça. Todos falavam agora entre dentes, mas ninguém
o interpelava com frontalidade.
– Estes
temas estão a dar comigo em doido. Ou é a guerra, ou o desgraçadinho que vive
na rua, ou o menino que não tem o que comer. Mas este homem não tem nada de
positivo para mostrar? Que tal um romântico pôr-do-sol? Lamechas? Talvez seja,
mas pelo menos é bonito. Estou farto que se sirva de mim para pintar a preto e
cinzento. Eu quero é cores quentes, que vibrem e façam vibrar quem contemplar o
quadro.
– Acho que
tens razão – disse, por fim, o vermelho. – Estou quase novo. Já nem me lembro
quando foi a última vez que ele me destapou.
– Eu pelo
contrário estou quase no fim e vivi tão pouco. Não há dia em que ele não me
esprema – lamentou-se o preto.
A pouco e
pouco, muitos foram manifestando a sua opinião. A luz observava de cima sem
intervir, mas olhando para o quadro, dava-lhes razão. Lá estava um menino
desgrenhado, de olhar triste e roupas esfarrapadas que, de mão estendida, pedia
ajuda a quem passava.
– E se
mudássemos o quadro? – perguntou de supetão o Pincel nº 1, que até ao momento
se limitara a ouvir.
O silêncio
foi imediato. Até então ninguém pensara em agir, só mesmo em criticar, protestar
e barafustar. E se fosse esse o caminho? Era possível que o que faltasse fosse apresentar
ao pintor uma outra visão da realidade, uma nova perspetiva de encarar a vida,
uma diferente forma de sentir.
– Bem, eu
por mim estou de acordo – declarou o Pincel nº 4.
– Eu também –
respondeu o vermelho, e um após o outro, todos foram dando a sua concordância.
– Hei.
Esperem lá. Então e eu não tenho uma palavra a dizer? – interveio o quadro, um
tanto irritado. Afinal, era dele que falavam. Não bastava dizerem mal, ainda o
queriam mudar. – Eu sou o produto da criatividade de alguém, o que vocês querem
fazer é crime. Vocês vão adulterar uma obra de arte. Hei! Que é isso? O que é
que estão a fazer? Porque me estão a mudar a roupa?
De nada
servia toda aquela oposição. Os pincéis e as tintas trabalhavam em conjunto.
Vestiam-no de jeans e T-Shirt vermelha, pintavam um lindo céu azul e
colocavam-lhe uma borboleta docemente poisada na mão aberta. Na cara
desenhavam-lhe um sorriso e davam-lhe brilho aos olhos. O chão negro era agora
de relva verdejante com flores, que o situavam numa primavera harmoniosa.
– Agora sim,
agora é um quadro que me orgulho de ter pintado – afirmou o Pincel nº 4.
– Não é só
obra tua, é minha também – reclamaram em coro os restantes.
Era, com
efeito, uma obra de quase todos. O preto ficara de fora, mas não se importara,
soubera-lhe bem o descanso.
De repente,
ouviram a chave rodar na porta. Ah não! Não se haviam dado conta das horas e
tudo aquilo estava um caos. Petrificados, prepararam-se para o pior. Nem a luz,
com o susto, conseguiu ter qualquer reação e permaneceu acesa.
– Mas que
revolução é esta? O que é que se passa aqui? – O pintor falava alto, sem
conseguir compreender o que acontecera.
Via pincéis
espalhados, tubos de tinta abertos, a paleta suja. A primeira reação foi pensar
que havia sido alvo de um assalto, mas mirando em volta, verificou que nada
faltava. Só nesse momento, os olhos pousaram no quadro.
– O que é isto?
Quem se atreveu a entrar aqui só para destruir a minha obra?
– Atchim! – O
amarelo, que era muito sensível e não podia estar aberto por muito tempo, não
conseguira evitar o espirro.
O pintor
percebeu então o que sucedera.
– Com que
então, isto é uma revolta! Deixem estar, que dou já um jeito neste atentado à
pintura.
Lançou mão
do preto e espremeu-o até à última gota. Molhou o pincel e decidido, dirigiu-se
para o cavalete. Olhou o quadro, observando cada detalhe. Era a primeira vez
que o fazia, desde que entrara. Ficou ali, analisando cada pincelada, com o Nº
2 pronto a intervir a qualquer momento.
Com leveza,
a curvatura da boca foi mudando de sentido e um sorriso começou a relevar-se no
rosto. Decidido, avançou para o quadro e nele colocou o seu nome.
Quita Miguel