sexta-feira, 17 de janeiro de 2014


Uma demão de tinta

 
– Hoje temos a sobremesa favorita do avô! – anunciou a mãe com o sorriso dos dias felizes.

– E a minha também – declarou Carlos, colocando-se de joelhos na cadeira e estendendo o prato, na esperança de ter prioridade na distribuição do bolo.

Claro que a sorte não esteve do seu lado. «Primeiro os mais velhos», a mãe sempre dizia. Teria de esperar. Ficou ali, de prato em riste, até que uma fatia do bolo de chocolate deslizou na sua direção. Estava uma delícia, como sempre, pena a mãe não o fazer mais vezes. Havia um problema qualquer de calorias, ele nunca percebera bem o quê, mas isso também pouco lhe interessava. O importante era que, em certas ocasiões, a mãe se esquecia daquela ameaça invisível e produzia a sua obra-prima.

– Vá lá, toca a lavar os dentes.

Como os adultos conseguem ser chatos. Porquê tirar já aquele gostinho tão bom? Mas, fazer o quê? Sabia que de nada serviria refilar. Se o fizesse, corria o risco de ficar sem sobremesa ao jantar. Então, engoliu a reclamação e correu para a casa de banho. Depois, teria toda a tarde para brincar. Como era bom estar de férias, melhor ainda quando os pais também estavam. Apesar de, por vezes, serem uns melgas, gostava quando estavam todos juntos.

– Papá, queres tentar bater-me no novo jogo?

– Tarefa impossível, mas vamos lá… – resignou-se o pai, consciente de que iria levar uma abada.

– E tu vôzinho, não queres ver a tareia que vou dar ao papá?

– Não meu amor. Afinal, que há de novo nisso? – respondeu o velho rindo, enquanto vestia o sobretudo. – Depois de um almoço como este, preciso de andar um pouco.

Agasalhou-se e saiu. Apesar do frio, o céu azul, pintado com algumas nuvens ligeiras, convidava a um passeio à beira-mar. Puxou a gola para cima, colocou as mãos nos bolsos e fez-se ao vento. Já não havia a quem dar as mãos, de modo que deixara de usar luvas. A mulher não o acompanhava mais, e o neto já se achava demasiado crescido.

Alguns temerários, como ele, passeavam-se pelo paredão, percorrendo a pé os quilómetros que ligavam Cascais ao Estoril. Outros preferiam a bicicleta ou os patins em linha. Gostava de patins em linha, achavas-lhes uma certa piada. Se fosse mais novo…, mas na sua idade qualquer queda poderia detonar uma avalanche de consequências. Não pretendia arriscar. Talvez o Carlitos um dia se entusiasmasse. No próximo aniversário, era capaz de lhe oferecer, não asas, mas rodas para os pés.

Começou a sentir cansaço e invejou o tempo em que as pernas colaboravam sem olhar para o relógio. Inverteu a marcha e iniciou o caminho de regresso.

Como não lhe apetecia fechar-se em casa, foi sentar-se no jardim frente ao mar, deixando-se embalar pelo sussurro das ondas a alongarem-se na praia. Era um lugar que ajudava a pensar. Fora naquele banco que, ao longo da vida, fizera planos, procurara soluções, rira e deixara cair até uma ou outra lágrima. Era o banco mágico, que ele e a mulher haviam construído e onde encontravam sempre a resposta para qualquer indecisão.

Ela desenhara-o, queria-o diferente de qualquer outro. Ele comprara e cortara a madeira, e ambos o haviam montado e pintado naquela cor forte. «Cor de vida», dissera ela.

Estava a precisar de uma nova demão, talvez a filha o pudesse ajudar. Não que a tarefa fosse árdua, mas o trabalho adquiria outro prazer e significado se feito a quatro mãos.

– Brrr…. que frio. Acompanhas-me num cacau quente? – perguntou a filha, sentando-se ao seu lado e estendendo-lhe a caneca fumegante. – Sabia que te ia encontrar aqui.

Como era bom sentir as mãos aquecerem em torno da caneca.

– Olha ali! Estás a ver aquele gigante? Vê bem se não é assim que podemos imaginar Golias? – O velho apontava as nuvens que deslizavam no céu. – Passei muitas horas com a tua mãe aqui sentado, vendo figuras formarem-se e transformarem-se, umas dando lugar a outras e outras e outras...

– Coisa de artista, eu acho!

– Talvez. É bem possível que o olhar de um artista esteja mais disponível para espelhar a imaginação. A tua mãe ensinou-me a olhar o mundo com os olhos da beleza. Colocava o cavalete aqui, bem em frente, e eu ficava a admirá-la, vendo os traços transformarem-se em seres que ganhavam vida, em paisagens que nos convidavam a entrar, em cores que nos envolviam e nos faziam acreditar que tudo é maravilhoso. Acho mesmo que a tua mãe nunca pintou um quadro triste, melancólico talvez, mas triste não.

– A mãe amava a vida e essa era a sua grande força. Por mais difícil que parecesse a situação ela sempre dizia: «Isto está a acontecer porque tenho algo a aprender, se estiver atenta saberei o quê.» A mãe era uma dessas pessoas que nunca deveria morrer.

– E não morreu, podes estar certa!

O pai pegou na mão da filha e beijou-a. A mãe vivia através dela, através do neto, através dos quadros que pintara e através daquele banco, que ambos haviam construído e que agora precisava de uma demão de tinta.

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