segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014


GANHANDO O MUNDO

– Sai-me da frente dos pés, que raio! Vá, vai lá para fora.

Mal a porta se abriu correu pelo jardim, rebolou-se no relvado, correu atrás dos pássaros. Estava feliz porque reconhecera a movimentação de passeio. Adorava quando saiam todos juntos.

Só que naquele dia, para espanto de Damião, após carregarem as malas e entrarem no carro, não o chamaram. Limitaram-se a partir, deixando-o para trás.

Do automóvel que ganhava velocidade, partiu um último olhar, que de imediato se desviou.

Ele correu, implorando que parassem, que não se esquecessem dele, que o levassem também, mas o carro ia ficando cada vez mais longe. No final da rua parou no semáforo. Damião acelerou a corrida. Ia conseguir, ia conseguir, ia conseguir… quando estava apenas a alguns metros o sinal mudou para verde e ele, apesar da corrida desenfreada, permanecia cada vez mais para trás. Quando os perdeu de vista, deixou-se ficar estático no meio do cruzamento sem saber por onde seguir.

– Hei cão maluco. Parece que queres morrer. – Alguém gritou.

Durante alguns minutos andou para trás e para diante, depois regressou a casa e dirigiu-se à janela para se assegurar de que não estava ninguém lá dentro. Tudo permanecia fechado e silencioso.

Não sabe por quanto tempo continuou na mesma posição expectante, os olhos fixos no horizonte como se esperasse por um qualquer sinal. Só que esse sinal não vinha. Sentia-se entre a rendição e a perseverança, entre a certeza de que fora propositadamente deixado para trás e a esperança de que tivesse sido apenas esquecido.

Sentado à luz da lua deixou-se invadir pelo medo, o medo de ficar sozinho, o medo de ninguém o querer, o medo de estar, de forma irremediável, perdido no mundo.

Algures, começou um grilo a cantar. Ao longe, respondeu-lhe outro.

A menina da casa vizinha começou a acariciá-lo. Com ternura, sentada nos degraus da entrada, afundava-lhe os dedos no pelo. «Assim está melhor», pensou, mas logo alguém a chamou, e Damião ficou de novo só.

Não tem ideia de quantos dias passaram, até que o automóvel chegou à porta de casa e os donos desceram. Damião saltou em torno deles, mostrando a sua alegria pelo tão esperado regresso. O dono falava ao telemóvel sem lhe dar atenção, mas o cão não desistia, rodando á sua volta. Contudo, aquilo não pareceu agradar, pois o dono revirou os olhos e gritou-lhe para estar sossegado e parar. Confuso, Damião insistia. Então, o homem começou a ficar furioso, gritou ainda mais alto e voltou para o telefone.

A dona, com uma mão nos cabelos agitados pelo vento, metia com pressa a chave na fechadura. Quando a porta se fechou atrás deles, uma paz miraculosa invadiu-o. A casa acolheu-o. Pousaram a bagagem e sentaram-se como que dizendo: «eis-nos aqui», mas sem proferirem palavra. Damião deitou-se, o focinho entre as patas, olhando ora para um, ora para outro, esperando a tão aguardada festa. Mas a festa não veio.

A dona abriu os braços resignada.

– Vou dar-te um pouco de leite – disse.

Bebeu-o com sofreguidão. Há muito que vivia dos restos que conseguia apanhar nos caixotes ou no prato de algum cão desatento. Não foi dita mais nenhuma palavra. Ambos sabiam o que acontecera.

Então o que fazer? Não só naquele dia, mas nos que se seguiriam.

Recordou-se de quando saiam para trabalhar e ele ficava em casa, sozinho. Gostava de vasculhar tudo. Por vezes chateado, saltava para as costas do sofá e ficava a observar o movimento da rua.

Nunca antes o tinham deixado só, mais do que algumas horas, e nunca fora de casa. Por alguma razão tudo mudara. Pouco a pouco, descobria a realidade do lugar onde vivia. Já não pertencia ali, já não era bem-vindo.

Foi até à porta da rua e ladrou, pedindo que lha abrissem. Quando o fizeram, saiu sem hesitação.

Andou até ao passeio, virou-se e deitou-lhes um último olhar. Desistia, naquele momento, do seu papel de animal de estimação. Era provável que nem dessem pela sua falta.

Um grupo de cães vadios atravessava a estrada. Correu e juntou-se-lhes. Podia ser que pelos da sua espécie, fosse melhor acolhido.

Quita Miguel

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