NÃO INCOMODAR
Quero
dizer que cansei. Cansei de fechar os olhos, olhar para o lado, fazer que não
vejo. Que não vejo que esta vida se torna cada vez menos vida e mais rotina.
Rotina de hábitos, de frases feitas, de sorrisos estudados, de sins que valem nãos.
A
lista do ressentimento e da calúnia é longa, porque há sempre quem não consiga
deixar o velho vício de escarnecer e mal dizer. Nada há para se discutir ou
explicar, a única preocupação é dizer mal.
Muito
mais existe do que aquilo que é mostrado, porque em tudo o que de legítimo fazermos,
nos ocultamos. Não temos coragem de assumir que não gostamos, que enchemos o
saco, que não estamos nem aí para as convicções de tantos. Mas como? Isso seria
ir contra o estabelecido. Então, o que irão pensar de nós?
Assustamo-nos
continuamente. Aqui e ali interrompemos a dança harmoniosa da vida com medo do
desemprego, da violência, das contas a pagar, das crianças a educar e, quando
damos por isso, perdemos simplesmente a capacidade de dançar.
Buscamos
significados mais profundos para a nossa vida, porque nos sentimos
responsáveis: por nós, pelo outro, pelo mundo, pela vida. Mas chegamos sempre tarde
demais e acabamos ficando enredados na superficialidade. Bem cedo, percebemos
que ninguém diz o que pensa e juntamo-nos a esse grupo por comodidade, por
receio, por insegurança. É difícil que algum dia estejamos preparados para a
verdade, aquela que pesa, aquela que vemos quando nos olhamos ao espelho e não
gostamos da imagem refletida, aquela que nos tortura quando fechamos os olhos e
não conseguimos dormir. Mentira, ignorância ou falsa noção de utopia?
Então,
construímos à nossa volta uma capa cada vez mais forte, um muro cada vez mais
alto, que nos protege mas em simultâneo nos isola.
Atacamos
antes que nos ataquem, como se o outro fosse uma permanente ameaça ao nosso
lugar no mundo, que nem sabemos bem qual é. Pode ser um bom critério, mas sinto
muito dizer que isso não faz parte da vida, nem é natural.
Acordamos
a cada dia com raiva de tudo e de todos e começamos a discutir no trânsito,
para continuarmos no emprego e terminarmos em casa. E assim se vãos os bons
momentos, os momentos fraternos.
Sem
grandes conversas nem palavras explicativas, vamos esquecendo o significado de
solidariedade, simplicidade, honestidade e carinho. Sentimentos sem os quais, por
certo, nem estaria aqui.
Mas
há que ter esperança de que esses valores renasçam e não se deixem esmagar
sobre o poder de traficantes, que devem achar lindo matar com lentidão os
viciados, ou de políticos que no auge da sua corrupção permitem que a má
informação, a ignorância e a lavagem cerebral alimentem em parte toda esta
insanidade.
Nunca
fui muito nacionalista, nem me interessei pela bela representação nacional.
Aliás nunca me interessei por nada, pela simples razão de ser nacional. “O que
é nacional é bom!”, frase de publicitário, outra área onde a falsidade impera.
Quando
deixaremos de ser publicitários e teremos a coragem de encarar o mundo sem
óculos cor-de-rosa, sem véus de neblina, sem falsas ilusões? Quando assumiremos
no íntimo que cor de pele, condição social, instrução são apenas atributos
exteriores e, olhando bem para dentro de nós, conseguiremos descobrir os
valores que ocultamos sob a capa social?
Quando
é que em vez de dar uma esmola para descansar a consciência, procuraremos
contribuir de um modo mais definitivo para dar dignidade ao mundo? Em vez de
lhes dar o peixe, porque não os ensinamos a pescar? Frase feita? Infelizmente,
sim!
Se
tivermos a coragem de gritar «Não!» dormiremos pior? É bem possível, mas por
algum lado teremos de começar a limar as pontas, e que pontas ásperas temos
para limar.
Ou
acreditamos em definitivo que este mundo ainda tem jeito e que temos capacidade
de o mudar, ou mais vale mandar tatuar bem no meio da testa: NÃO INCOMODAR.
Quita
Miguel
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