segunda-feira, 31 de março de 2014


Sem ar

Sem ar o rapaz parou.
Parou para, silencioso, retirar a pistola do bolso.
O bolso onde a mão tremia, e o suor tornava o punho escorregadio.

Escorregadio como o caminho que escolhera e por onde se perdera.

Perdera bens, esperança e não havia quem lhe estendesse a mão.

Mão que determinada agarrava a pistola pronta a pôr termo a tudo.

Tudo parecia perdido até se ver refletido nas águas do rio, então sem ar o rapaz parou.

Quita Miguel

Desafio nº 63 – fim de cada frase é igual ao início da próxima…

sábado, 22 de março de 2014


Derrapando

Malheiro esfregou os olhos e coçou o nariz. Detestava quando a lata velha acelerava pela prateleira apertada, levantando uma nuvem de pó.

– Para lá com isso – refilou o urso, ansiando voltar para o baú. Era escuro, mas ao menos podia dormir sossegado.
O carro desafiou-o, chiando os pneus, esquecendo-se que estavam carecas.

– Aiiiiiiiiii – gritou ao derrapar, ficando pendurado por uma roda. – Ajuda-me. Não vez que estou quase a cair.

– Se pedires com jeitinho…

– Por favor! Por favor!

Quita Miguel

Desafio nº 62 em 77 palavras – dois objetos, numa prateleira cheia de pó, conversam

domingo, 16 de março de 2014


Sempre

Sempre que uma notícia importante se fazia anunciar, eu chegava tarde.

Ficava sempre do outro lado da fronteira, ali onde nada acontece.

Porque não podia enfrentar a realidade, ficava sempre apenas por ali.


Cheia de raiva, exclamava sempre o que me ia na alma.

Ligava o motor do pequeno Triumph e seguia sempre à distância.

E sempre que me perguntava porquê, não achava a resposta certa.

Contudo, fingia-me sempre perfeita, mostrando o meu orgulhoso como uma obra-prima.
 
Quita Miguel
Desafio RS nº 11 – 7 frases de 11 palavras, sempre com uma palavra repetida.

sexta-feira, 7 de março de 2014


Por Amor

Por amor seco-te a lágrima que recusas deixar cair, amparo a tua subida quando as pernas te pesam, seguro a tua mão quando o medo se instala.

Por amor rio contigo da piada sem graça e ouço atenta a história que contaste vezes sem conta.
Por amor acaricio-te os cabelos ralos e dou-te o comer à boca quando as mãos te tremem.

Por amor garanto-te que tudo vai ficar bem e, vendo o teu olhar de dúvida, digo-te: «Se não acreditas em mim, acredita ao menos Nele!»
Quita Miguel

domingo, 2 de março de 2014


RUMO AO JARDIM

Quando o senhorio apareceu naquele dia de Ano Novo, o corpo entufado, lembrando o Perú de Natal, que mutilado jazia no frigorífico, adivinhava-se que a notícia não seria boa.
O contrato de arrendamento não seria renovado.
 

– Avisei que não admitia animais – afirmou com a segurança de ser o detentor da última palavra.
– O que o senhor disse foi que não podia ter cães, ora eu só tenho gatos. – O argumento de Hilária era fraco, como os seus pulmões.
«A menina não pode ter gatos, tem de se desfazer deles», insistira o médico. «Antes morrer», respondera ela, num tom que não admitia réplica.
– Tem um mês para me devolver a chave, nem mais um dia. – Não havia margem para desculpas. Era uma sentença sem recurso.

 
Vendo-a distraída e triste, os gatos circundaram-lhe as pernas. A pressão teimosa das marradinhas e o ronronar cadenciado devolveram-lhe a convicção de que não havia maravilha maior do que o bem-querer.
– Prevê-se um furacão para o fim do mês? Pois então, aproveitemos o dia. – Colocou o cachecol, apertou o casaco, olhou-se ao espelho e voltou atrás para colocar um pouco de batom. Aprovando o resultado, pegou na mala e decidida desceu os degraus.
Partiram os três, rumo ao jardim despido pelo inverno, as sombras refletindo-se no chão, revelando o poder escondido no interior de cada um.


Quita Miguel