segunda-feira, 28 de abril de 2014


Médico à força

– Perdão! Mas há muita gente…
O olhar do pai fê-lo estremecer e interromper a frase. Sabia que seria uma solução errada procurar impor a sua opinião, ainda que fosse a certa e que se tratasse do seu futuro, da sua realização ou frustração.
Queria gritar «Não! Sou eu que decido!», mas girava-lhe a cabeça, ao mesmo tempo que o coração disparava por medo de se ver enredado na profissão que não queria.

Não podia falhar no mais importante, mas a cobardia silenciava-o.
Nascera numa família de médicos, e essa condição ameaça escravizá-lo, logo a ele que nem podia ver sangue.
Quita Miguel

quinta-feira, 24 de abril de 2014


A DERRADEIRA VIAGEM

 A mala aberta em cima da cama recebia cada peça com a resignação com que Zélia a dobrava e a arrumava no seu interior.

Não precisaria de muita coisa. Duas malas seriam suficientes. Os olhos percorreram o interior do guarda-roupa, que as portas escancaradas expunham sem pudor. Escolheu com desvelo cada peça, recordando como se haviam introduzido na sua vida. Aquela comprara-a no Brasil, quando estivera em Fortaleza, a outra trouxera-a da Grécia, de Mikonos.

Demorou-se, sentindo o toque de seda da écharpe de tons esverdeados, a sua cor preferida. Assinalava uma data importante. Bodas de ouro não são para qualquer um, muito menos nos tempos que correm. Fora afortunada durante esses cinquenta anos, brindada com um amor sincero e partilhado.

Levava pouca coisa, sim, mas tudo possuía um significado especial. Por isso, escolhia cada peça sem pressa. Era da sua história que se tratava.

A meio da tarde tudo estava pronto. As malas aguardavam-na à porta. Só ela faltava.

Percorreu cada divisão com o prazer da memória e o peso da despedida. Observou-as com olhos de contemplação.

Começou pelo quarto onde o marido, durante tanto tempo, a aconchegara e que, há alguns anos, a recebia sozinha a cada noite. Nunca tivera filhos e com a morte do marido passara a contar só consigo. Da família fora-se distanciando ao longo dos anos. Diferentes maneiras de pensar, objetivos diversos, discordâncias, motivos para percorrerem caminhos diversos que seguiam em paralelo, sem nunca se cruzarem.

Os amigos, um após o outro, haviam também ficado para trás. Uns optando por terras distantes, outros falecendo antes de tempo. Agora, podia mesmo dizer que estava por sua conta e risco. Não que isso a assustasse, ou mesmo lhe desagradasse. Sempre fora bastante independente. Do que sentia falta era de conversar, de reviver momentos passados, de ter quem compreendesse o que sentia a cada instante.

Entrou no escritório. Naquela secretária o marido registara, na velha máquina de escrever, os mais belos textos. Nunca se entendera com computadores. Dizia que a falta do papel lhe tolhia a imaginação e lhe bloqueava a criatividade.

Pegou na moldura e contemplou com ternura a fotografia do casal no Corcovado. Mesmo agora, passados mais de doze anos, podia reviver a imensa paz que a invadira quando, do cimo da escadaria, se deparara com o Rio de Janeiro a seus pés. Imenso, belo de uma beleza que só um verdadeiro artista consegue descrever. Só então se voltara e encarara o Cristo para se sentir ainda mais esmagada, insignificante, um ser banal face ao que aquela estátua significava.

Olhou em volta, admirando as centenas de livros que preenchiam as paredes. Milhões de palavras, de pensamentos, de ideias, de sentimentos forravam aquela sala. Escolheu um livro e folheou-o. Quantas vezes fora aberto, examinado, apreciado? Não fazia ideia. Muitos deles herdara-os, e traziam já consigo uma história de vida, à qual a sua se adicionara. Agora, estavam prontos para seguir o seu caminho, disponíveis a encantar outros olhos, abrir outras mentes, doutrinar outros espíritos.

A partir da próxima semana, fariam parte do legado da biblioteca municipal, a quem os doara. Tranquilizava-a saber que seriam bem cuidados, quando ela se fosse.

Há algum tempo, fora-lhe diagnosticado Alzheimer. Sabia que, com mais ou menos morosidade, o cérebro começaria a degenerar, perdendo as faculdades mentais. Fora então que decidira escrever o final da sua vida. Até essa altura, não pensara muito no que fazer quando um dia não pudesse mais viver sozinha. Mas a doença obrigara-a a tomar consciência de que, em breve, deixaria de ser a pessoa autossuficiente que sempre se orgulhara de ser.

Informara-se, com detalhe, sobre a evolução da enfermidade. Queria conhecer em pormenor o que o futuro lhe guardava.

Registava já, se bem que com algum espaçamento, alterações da memória episódica. Esses incidentes iriam agravar-se com a progressão da doença e arrastariam consigo défices visuo-espaciais e de linguagem.

Só lhe restava uma solução. Procurar um lugar onde pudessem cuidar dela e que lhe fosse acolhedor. Um dia, quase sem querer, deparou-se com esse espaço. Um lar perdido no meio do nada, com a natureza como moldura. O marido teria aprovado. Pena que não a pudesse acompanhar. Ou talvez fosse melhor assim. Iria sofrer, quando se percebesse esquecido.

Verificou uma última vez que fechara o gás, a água e apagara as luzes. Estava tudo.

Não. Faltava ainda uma coisa. Regressou ao escritório, pegou na moldura e colocou-a numa das malas. Iria levá-la consigo. Dentro de pouco tempo, não saberia quem estava ao seu lado, nem onde ou quando a fotografia fora tirada, mas seria a prova de que tivera uma vida, um amor, uma história.

Pegou nas malas e saiu, deitando um último olhar para o interior do lar, que a acolhera durante mais de cinquenta anos. O táxi aguardava já lá em baixo.

– Dona Zélia vai de viagem?

– Viagens, viagens… Sim, pode dizer-se que vou de viagem – respondeu com um suave sorriso.

Entrou no elevador e disse para consigo: “Vou para a derradeira viagem.”
 
Quita Miguel

 

 

terça-feira, 22 de abril de 2014


FUNERAL

Colocaram o caixão na borda da sepultura.

Não era momento de pensar em tristezas. Ele sempre insistira numa despedida alegre. Partia para uma nova morada, que acreditava seria de harmonia.

Amigos olhavam-se inseguros, não habituados à condição de pessoas felizes numa hora de despedida.

Atravessei o relvado e parei diante do grupo. Sentia-me como um usurpador, tomando-lhe o lugar de leader, a ele que permanecia à beira da cova.
 
Iniciei os primeiros movimentos. Um pouco constrangidos, todos me seguiram numa dança frenética, que só abrandou pelo receio de escorregar, quando a chuva nos decidiu banhar. Seria batismo? Não. Era Abril.

Quita Miguel

Tema do desafio drabble: Abril

segunda-feira, 21 de abril de 2014



Depois do fim, era a incerteza.

Irma olhou em volta, a perplexidade estampada no rosto.

Para dizer a verdade, guardara uma réstia de esperança de que alguém a aguardasse. Contudo, viu-se sozinha, parada num amplo vazio, diante do portão que se fechara, devolvendo-lhe a liberdade. Ali o ruído era bem diferente do constante zumbido da prisão.

«Fantástico» quis gritar ao sentir-se dona da sua vida, mas não conseguiu. Olhou à direita, à esquerda e seguiu em frente.

Quita Miguel

Desafio nº 64 em 77 Palavras – texto começando por “Depois do fim…”

terça-feira, 15 de abril de 2014


Penhasco
 
O agiota, sorrindo-lhe, estendeu a mão para receber o colar. Examinou cada pérola como se desconfiasse da sua autenticidade e, por fim, pagou-lhe menos de metade do real valor.
– Então, até para a semana – bradou o homem de trás do balcão, quando o cliente, curvado, ganhava a rua.
Carlos Sérgio pressionou as notas contra o peito, jurando que aquela seria a última vez. Mas não foi. Àquela se seguiram tantas outras.
Hoje, saiu do casino de bolsos vazios e despido de algo que pudesse empenhar.
Passou pelo agiota, virou à direita e caminhou para o penhasco em busca de redenção.

 
Quita Miguel

sexta-feira, 11 de abril de 2014


Abrigo

Repetiam-lhe que estava errado. Parou, cansado de discutir. Devagar, regressou ao automóvel. Desiludido, sentou-se ao volante. Vinte e dois anos. Era um jovem velho. Vagueou o dia inteiro. Buscava um canto isolado.
Aceitara uma missão impossível. Abraçara-a com amor infinito.
Um cão aproximou-se, rastejando. Sofredor, perscrutava a noite. Acariciou-o, e ele tremeu.
– Não tenhas medo – disse-lhe.
Paciente, ganhou-lhe a confiança.

Conduziu-o até ao abrigo. Era apenas mais um. Latidos acolheram-no com entusiasmo.
Quantos salvara já? Não sabia.
Quita Miguel

sábado, 5 de abril de 2014


ESCADINHAS DA LUZ

São de empedrado, com um patamar a cada seis degraus. A meio, um corrimão de ferro, pintado de verde-escuro, ajuda quem precisa de apoio para subir ou descer, ou serve de escorrega para os mais novos. No cimo, um pátio florido, dominado por um carvalho secular, é palco de jogos e convívio diário. São assim as Escadinhas da Luz.

Não se sabe, ao certo, a que se deve tal nome. Uns contam que há longos anos, ninguém consegue dizer quantos, aí viveu a Maria da Luz, uma moçoila linda, cortejada por muitos. Os pretendentes ali acorriam, tentando arrancar-lhe um sorriso, uma palavra e quem sabe um beijo. Diziam que lhes aquecia alma, irem às Escadinhas da Luz.

Outros, por sua vez, afirmam que o nome advém da singular luminosidade que envolve a escadaria ao nascer do sol. É como se vibrasse em consonância com o astro-rei que, num ritmo lento, vai ganhando força e dominando o horizonte.

Seja por uma ou outra razão, a verdade é que não podia haver melhor nome para a minha rua. Nela se percorre uma vida calma e plena de luz.

Mal os dias aquecem, as casas prolongavam-se para o exterior.

Os homens juntam-se no pátio. Sentam-se às mesas de ferro forjado do Café do Ti Manel e aí jogam às cartas, ao dominó ou limitam-se a jogar conversa fora. A bem dizer, é mais uma tasca do que um café. Aqui ainda é frequente pedir-se um copo de 3 ou de mistura tirado diretamente do barril (a Asae que não nos oiça).

As mulheres preferem sentar-se ao longo dos degraus. Bancos, cadeiras, caixotes de madeira, tudo serve para o efeito. Aí se faz renda, ponto cruz e se contam histórias.

Todos os dias, à mesma hora, se ouve música a sair da mansarda do nº 10.

Nas noites quentes de verão, o pianista toca até mais tarde e todos nós, que vivemos nesta rua, dormimos de janela aberta e deixamo-nos embalar por Bethoveen, Grieg e Schubert.

Com ele vive a mãe, uma senhora de cabelo todo branco, que as pernas atraiçoam, não permitindo que enfrente as escadas até à rua e goze do convívio animado. O contacto com o mundo exterior está confinado à janela do quarto de vão esconso.

Gosta de dar comer aos pombos. Todas as tardes coloca um alguidar com água no parapeito da janela e, com a algibeira do avental recheada de pão, sorri enquanto vai partindo cada carcaça, embebendo-a em água e atirando-a ao chão.

Os pombos, que já conhecem o ritual, esperam, no beiral do prédio em frente, que a janela se abra. Então, voam até aos degraus e com avidez debicam os pedaços de pão, à medida que estes vão caindo.

A cena, que de teatral só tem a repetição, é acompanhada pelo som do piano, que a cada acorde vai dominando a rua.

Quando o pão termina e a janela se fecha, os pombos voam em formação como que agradecendo o alimento e a música com que foram presenteados.

Os moradores, que sempre fazem silêncio durante a oferta de alimento, voltam à conversa e o sussurro invade de novo as Escadinhas da Luz, acompanhado pelo som das brincadeiras das crianças.

Aqui, as novas tecnologias ficam relegadas para segundo plano. No período de férias vive-se na rua, do nascer ao pôr-do-sol. Ir a casa, é só para trincar alguma coisa, mas rápido, rápido que a brincadeira aguarda ansiosa.

Os miúdos jogam ao pião, à macaca, ao elástico, saltam à corda, brincam à apanhada, às escondidas e à linda falua. Pelos degraus aventuram-se no jogo da carica e do berlinde e riem com toda a emoção que a vida lhes consagra. Chegam mesmo a organizar verdadeiros campeonatos com direito a medalhas e tudo.

Por vezes, somos visitados por um pintor. Com o cavalete numa mão e a caixa de tintas na outra chega de mansinho, quase com timidez e instala-se junto ao castanheiro no meio do pátio. No banco de jardim coloca a mala que abrindo-se revela tubos, pincéis, frascos, panos. Abre o cavalete e nele coloca uma tela. Então procura o ângulo ideal e começa por fazer um esboço. Primeiro as linhas de perspetiva, depois as casas, as crianças, o retrato do dia-a-dia que ali se vive. Outras vezes, escolhe simplesmente alguns pormenores e faz realçar as sardinheiras nas varandas, as mulheres nos degraus ou os homens que jogam.

Esboço traçado, prepara a paleta de cores e, misturando-as, vai dando vida à tela branca e recriando a nossa existência.

Quando termina, leva consigo um pedacinho das Escadinhas da Luz, que acabará pendurado na casa de uma terra distante, adquirido por algum turista que quer simplesmente uma recordação.

As crianças entusiasmadas, mal o veem chegar, correm a casa a buscar papel e lápis, disfarçam-se de artistas e aventuram-se face à folha branca.

E é neste clima de amor pela vida, neste sobe e desce diário, que sob os olhos discretos de todos, surgem os primeiros olhares tímidos, meio receosos, nascem os primeiros namoros, dão-se os primeiros beijos.

Muitos chegam a partir, procurando casas mais modernas, locais mais movimentados, espaços menos tranquilos, mas todos acabam por voltar, nem que seja para um rápido matar saudades da vida das Escadinhas da Luz.
Quita Miguel