quinta-feira, 24 de abril de 2014


A DERRADEIRA VIAGEM

 A mala aberta em cima da cama recebia cada peça com a resignação com que Zélia a dobrava e a arrumava no seu interior.

Não precisaria de muita coisa. Duas malas seriam suficientes. Os olhos percorreram o interior do guarda-roupa, que as portas escancaradas expunham sem pudor. Escolheu com desvelo cada peça, recordando como se haviam introduzido na sua vida. Aquela comprara-a no Brasil, quando estivera em Fortaleza, a outra trouxera-a da Grécia, de Mikonos.

Demorou-se, sentindo o toque de seda da écharpe de tons esverdeados, a sua cor preferida. Assinalava uma data importante. Bodas de ouro não são para qualquer um, muito menos nos tempos que correm. Fora afortunada durante esses cinquenta anos, brindada com um amor sincero e partilhado.

Levava pouca coisa, sim, mas tudo possuía um significado especial. Por isso, escolhia cada peça sem pressa. Era da sua história que se tratava.

A meio da tarde tudo estava pronto. As malas aguardavam-na à porta. Só ela faltava.

Percorreu cada divisão com o prazer da memória e o peso da despedida. Observou-as com olhos de contemplação.

Começou pelo quarto onde o marido, durante tanto tempo, a aconchegara e que, há alguns anos, a recebia sozinha a cada noite. Nunca tivera filhos e com a morte do marido passara a contar só consigo. Da família fora-se distanciando ao longo dos anos. Diferentes maneiras de pensar, objetivos diversos, discordâncias, motivos para percorrerem caminhos diversos que seguiam em paralelo, sem nunca se cruzarem.

Os amigos, um após o outro, haviam também ficado para trás. Uns optando por terras distantes, outros falecendo antes de tempo. Agora, podia mesmo dizer que estava por sua conta e risco. Não que isso a assustasse, ou mesmo lhe desagradasse. Sempre fora bastante independente. Do que sentia falta era de conversar, de reviver momentos passados, de ter quem compreendesse o que sentia a cada instante.

Entrou no escritório. Naquela secretária o marido registara, na velha máquina de escrever, os mais belos textos. Nunca se entendera com computadores. Dizia que a falta do papel lhe tolhia a imaginação e lhe bloqueava a criatividade.

Pegou na moldura e contemplou com ternura a fotografia do casal no Corcovado. Mesmo agora, passados mais de doze anos, podia reviver a imensa paz que a invadira quando, do cimo da escadaria, se deparara com o Rio de Janeiro a seus pés. Imenso, belo de uma beleza que só um verdadeiro artista consegue descrever. Só então se voltara e encarara o Cristo para se sentir ainda mais esmagada, insignificante, um ser banal face ao que aquela estátua significava.

Olhou em volta, admirando as centenas de livros que preenchiam as paredes. Milhões de palavras, de pensamentos, de ideias, de sentimentos forravam aquela sala. Escolheu um livro e folheou-o. Quantas vezes fora aberto, examinado, apreciado? Não fazia ideia. Muitos deles herdara-os, e traziam já consigo uma história de vida, à qual a sua se adicionara. Agora, estavam prontos para seguir o seu caminho, disponíveis a encantar outros olhos, abrir outras mentes, doutrinar outros espíritos.

A partir da próxima semana, fariam parte do legado da biblioteca municipal, a quem os doara. Tranquilizava-a saber que seriam bem cuidados, quando ela se fosse.

Há algum tempo, fora-lhe diagnosticado Alzheimer. Sabia que, com mais ou menos morosidade, o cérebro começaria a degenerar, perdendo as faculdades mentais. Fora então que decidira escrever o final da sua vida. Até essa altura, não pensara muito no que fazer quando um dia não pudesse mais viver sozinha. Mas a doença obrigara-a a tomar consciência de que, em breve, deixaria de ser a pessoa autossuficiente que sempre se orgulhara de ser.

Informara-se, com detalhe, sobre a evolução da enfermidade. Queria conhecer em pormenor o que o futuro lhe guardava.

Registava já, se bem que com algum espaçamento, alterações da memória episódica. Esses incidentes iriam agravar-se com a progressão da doença e arrastariam consigo défices visuo-espaciais e de linguagem.

Só lhe restava uma solução. Procurar um lugar onde pudessem cuidar dela e que lhe fosse acolhedor. Um dia, quase sem querer, deparou-se com esse espaço. Um lar perdido no meio do nada, com a natureza como moldura. O marido teria aprovado. Pena que não a pudesse acompanhar. Ou talvez fosse melhor assim. Iria sofrer, quando se percebesse esquecido.

Verificou uma última vez que fechara o gás, a água e apagara as luzes. Estava tudo.

Não. Faltava ainda uma coisa. Regressou ao escritório, pegou na moldura e colocou-a numa das malas. Iria levá-la consigo. Dentro de pouco tempo, não saberia quem estava ao seu lado, nem onde ou quando a fotografia fora tirada, mas seria a prova de que tivera uma vida, um amor, uma história.

Pegou nas malas e saiu, deitando um último olhar para o interior do lar, que a acolhera durante mais de cinquenta anos. O táxi aguardava já lá em baixo.

– Dona Zélia vai de viagem?

– Viagens, viagens… Sim, pode dizer-se que vou de viagem – respondeu com um suave sorriso.

Entrou no elevador e disse para consigo: “Vou para a derradeira viagem.”
 
Quita Miguel

 

 

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