ESCADINHAS DA LUZ
São de empedrado, com um patamar a cada seis
degraus. A
meio, um corrimão de ferro, pintado de verde-escuro, ajuda quem precisa de
apoio para subir ou descer, ou serve de escorrega para os mais novos. No cimo,
um pátio florido, dominado por um carvalho secular, é palco de jogos e convívio
diário. São assim as Escadinhas da Luz.
Não
se sabe, ao certo, a que se deve tal nome. Uns contam que há longos anos,
ninguém consegue dizer quantos, aí viveu a Maria da Luz, uma moçoila linda,
cortejada por muitos. Os pretendentes ali acorriam, tentando arrancar-lhe um
sorriso, uma palavra e quem sabe um beijo. Diziam que lhes aquecia alma, irem às
Escadinhas da Luz.
Outros,
por sua vez, afirmam que o nome advém da singular luminosidade que envolve a escadaria
ao nascer do sol. É como se vibrasse em consonância com o astro-rei que, num
ritmo lento, vai ganhando força e dominando o horizonte.
Seja
por uma ou outra razão, a verdade é que não podia haver melhor nome para a
minha rua. Nela se percorre uma vida calma e plena de luz.
Mal
os dias aquecem, as casas prolongavam-se para o exterior.
Os
homens juntam-se no pátio. Sentam-se às mesas de ferro forjado do Café do Ti
Manel e aí jogam às cartas, ao dominó ou limitam-se a jogar conversa fora. A
bem dizer, é mais uma tasca do que um café. Aqui ainda é frequente pedir-se um
copo de 3 ou de mistura tirado diretamente do barril (a Asae que não nos oiça).
As
mulheres preferem sentar-se ao longo dos degraus. Bancos, cadeiras, caixotes de
madeira, tudo serve para o efeito. Aí se faz renda, ponto cruz e se contam
histórias.
Todos
os dias, à mesma hora, se ouve música a sair da mansarda do nº 10.
Nas
noites quentes de verão, o pianista toca até mais tarde e todos nós, que
vivemos nesta rua, dormimos de janela aberta e deixamo-nos embalar por
Bethoveen, Grieg e Schubert.
Com
ele vive a mãe, uma senhora de cabelo todo branco, que as pernas atraiçoam, não
permitindo que enfrente as escadas até à rua e goze do convívio animado. O
contacto com o mundo exterior está confinado à janela do quarto de vão esconso.
Gosta de dar
comer aos pombos. Todas as tardes coloca um alguidar com água no parapeito da
janela e, com a algibeira do avental recheada de pão, sorri enquanto vai
partindo cada carcaça, embebendo-a em água e atirando-a ao chão.
Os pombos, que
já conhecem o ritual, esperam, no beiral do prédio em frente, que a janela se
abra. Então, voam até aos degraus e com avidez debicam os pedaços de pão, à
medida que estes vão caindo.
A cena, que de
teatral só tem a repetição, é acompanhada pelo som do piano, que a cada acorde vai
dominando a rua.
Quando o pão
termina e a janela se fecha, os pombos voam em formação como que agradecendo o
alimento e a música com que foram presenteados.
Os moradores,
que sempre fazem silêncio durante a oferta de alimento, voltam à conversa e o
sussurro invade de novo as Escadinhas da Luz, acompanhado pelo som das
brincadeiras das crianças.
Aqui, as novas
tecnologias ficam relegadas para segundo plano. No período de férias vive-se na
rua, do nascer ao pôr-do-sol. Ir a casa, é só para trincar alguma coisa, mas
rápido, rápido que a brincadeira aguarda ansiosa.
Os miúdos
jogam ao pião, à macaca, ao elástico, saltam à corda, brincam à apanhada, às
escondidas e à linda falua. Pelos degraus aventuram-se no jogo da carica e do
berlinde e riem com toda a emoção que a vida lhes consagra. Chegam mesmo a
organizar verdadeiros campeonatos com direito a medalhas e tudo.
Por vezes,
somos visitados por um pintor. Com o cavalete numa mão e a caixa de tintas na outra
chega de mansinho, quase com timidez e instala-se junto ao castanheiro no meio
do pátio. No banco de jardim coloca a mala que abrindo-se revela tubos,
pincéis, frascos, panos. Abre o cavalete e nele coloca uma tela. Então procura
o ângulo ideal e começa por fazer um esboço. Primeiro as linhas de perspetiva,
depois as casas, as crianças, o retrato do dia-a-dia que ali se vive. Outras
vezes, escolhe simplesmente alguns pormenores e faz realçar as sardinheiras nas
varandas, as mulheres nos degraus ou os homens que jogam.
Esboço
traçado, prepara a paleta de cores e, misturando-as, vai dando vida à tela
branca e recriando a nossa existência.
Quando
termina, leva consigo um pedacinho das Escadinhas da Luz, que acabará pendurado
na casa de uma terra distante, adquirido por algum turista que quer
simplesmente uma recordação.
As crianças
entusiasmadas, mal o veem chegar, correm a casa a buscar papel e lápis,
disfarçam-se de artistas e aventuram-se face à folha branca.
E é neste
clima de amor pela vida, neste sobe e desce diário, que sob os olhos discretos
de todos, surgem os primeiros olhares tímidos, meio receosos, nascem os
primeiros namoros, dão-se os primeiros beijos.
Muitos chegam
a partir, procurando casas mais modernas, locais mais movimentados, espaços
menos tranquilos, mas todos acabam por voltar, nem que seja para um rápido
matar saudades da vida das Escadinhas da Luz.
Quita Miguel
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