sábado, 5 de abril de 2014


ESCADINHAS DA LUZ

São de empedrado, com um patamar a cada seis degraus. A meio, um corrimão de ferro, pintado de verde-escuro, ajuda quem precisa de apoio para subir ou descer, ou serve de escorrega para os mais novos. No cimo, um pátio florido, dominado por um carvalho secular, é palco de jogos e convívio diário. São assim as Escadinhas da Luz.

Não se sabe, ao certo, a que se deve tal nome. Uns contam que há longos anos, ninguém consegue dizer quantos, aí viveu a Maria da Luz, uma moçoila linda, cortejada por muitos. Os pretendentes ali acorriam, tentando arrancar-lhe um sorriso, uma palavra e quem sabe um beijo. Diziam que lhes aquecia alma, irem às Escadinhas da Luz.

Outros, por sua vez, afirmam que o nome advém da singular luminosidade que envolve a escadaria ao nascer do sol. É como se vibrasse em consonância com o astro-rei que, num ritmo lento, vai ganhando força e dominando o horizonte.

Seja por uma ou outra razão, a verdade é que não podia haver melhor nome para a minha rua. Nela se percorre uma vida calma e plena de luz.

Mal os dias aquecem, as casas prolongavam-se para o exterior.

Os homens juntam-se no pátio. Sentam-se às mesas de ferro forjado do Café do Ti Manel e aí jogam às cartas, ao dominó ou limitam-se a jogar conversa fora. A bem dizer, é mais uma tasca do que um café. Aqui ainda é frequente pedir-se um copo de 3 ou de mistura tirado diretamente do barril (a Asae que não nos oiça).

As mulheres preferem sentar-se ao longo dos degraus. Bancos, cadeiras, caixotes de madeira, tudo serve para o efeito. Aí se faz renda, ponto cruz e se contam histórias.

Todos os dias, à mesma hora, se ouve música a sair da mansarda do nº 10.

Nas noites quentes de verão, o pianista toca até mais tarde e todos nós, que vivemos nesta rua, dormimos de janela aberta e deixamo-nos embalar por Bethoveen, Grieg e Schubert.

Com ele vive a mãe, uma senhora de cabelo todo branco, que as pernas atraiçoam, não permitindo que enfrente as escadas até à rua e goze do convívio animado. O contacto com o mundo exterior está confinado à janela do quarto de vão esconso.

Gosta de dar comer aos pombos. Todas as tardes coloca um alguidar com água no parapeito da janela e, com a algibeira do avental recheada de pão, sorri enquanto vai partindo cada carcaça, embebendo-a em água e atirando-a ao chão.

Os pombos, que já conhecem o ritual, esperam, no beiral do prédio em frente, que a janela se abra. Então, voam até aos degraus e com avidez debicam os pedaços de pão, à medida que estes vão caindo.

A cena, que de teatral só tem a repetição, é acompanhada pelo som do piano, que a cada acorde vai dominando a rua.

Quando o pão termina e a janela se fecha, os pombos voam em formação como que agradecendo o alimento e a música com que foram presenteados.

Os moradores, que sempre fazem silêncio durante a oferta de alimento, voltam à conversa e o sussurro invade de novo as Escadinhas da Luz, acompanhado pelo som das brincadeiras das crianças.

Aqui, as novas tecnologias ficam relegadas para segundo plano. No período de férias vive-se na rua, do nascer ao pôr-do-sol. Ir a casa, é só para trincar alguma coisa, mas rápido, rápido que a brincadeira aguarda ansiosa.

Os miúdos jogam ao pião, à macaca, ao elástico, saltam à corda, brincam à apanhada, às escondidas e à linda falua. Pelos degraus aventuram-se no jogo da carica e do berlinde e riem com toda a emoção que a vida lhes consagra. Chegam mesmo a organizar verdadeiros campeonatos com direito a medalhas e tudo.

Por vezes, somos visitados por um pintor. Com o cavalete numa mão e a caixa de tintas na outra chega de mansinho, quase com timidez e instala-se junto ao castanheiro no meio do pátio. No banco de jardim coloca a mala que abrindo-se revela tubos, pincéis, frascos, panos. Abre o cavalete e nele coloca uma tela. Então procura o ângulo ideal e começa por fazer um esboço. Primeiro as linhas de perspetiva, depois as casas, as crianças, o retrato do dia-a-dia que ali se vive. Outras vezes, escolhe simplesmente alguns pormenores e faz realçar as sardinheiras nas varandas, as mulheres nos degraus ou os homens que jogam.

Esboço traçado, prepara a paleta de cores e, misturando-as, vai dando vida à tela branca e recriando a nossa existência.

Quando termina, leva consigo um pedacinho das Escadinhas da Luz, que acabará pendurado na casa de uma terra distante, adquirido por algum turista que quer simplesmente uma recordação.

As crianças entusiasmadas, mal o veem chegar, correm a casa a buscar papel e lápis, disfarçam-se de artistas e aventuram-se face à folha branca.

E é neste clima de amor pela vida, neste sobe e desce diário, que sob os olhos discretos de todos, surgem os primeiros olhares tímidos, meio receosos, nascem os primeiros namoros, dão-se os primeiros beijos.

Muitos chegam a partir, procurando casas mais modernas, locais mais movimentados, espaços menos tranquilos, mas todos acabam por voltar, nem que seja para um rápido matar saudades da vida das Escadinhas da Luz.
Quita Miguel

 

Sem comentários:

Enviar um comentário