sexta-feira, 30 de maio de 2014


SONHO ESVENTRADO


 
– Temos aqui o homem, capitão – anuncia num tom vitorioso um sujeito, ao mesmo tempo que me puxa pelo braço, forçando-me a levantar.
Os dois homens arrastam-me para fora do barco, que me acolhera durante a noite, e atiram-me para a areia. Falam comigo, mas as vozes estão longe, a praia gira, e o sol forte impede-me de lhes ver a cara. Sinto que me carregam em direção ao mar. Quero protestar, gritar que não sei nadar, mas sem forças, resigno-me.
O choque com a água fria desperta-me, e o olhar gelado do meu genro põe termo aos restantes resquícios de álcool.
Queria ter uma borracha para apagar este momento e para apagar todos os outros em que as pernas trôpegas me conduziram onde não queria ir, porém permaneço amarrado a esta realidade à qual não pertenço. É que, por muito que tenha tentado alcançar a proa da vida, mantenho-me sempre na ré.
– Não sei o que faça consigo. – O capitão Zeferino José perfila-se diante de mim com a empáfia que a farda lhe concede, e com a censura que a condição de genro ratifica. – Adalberto Pais, o senhor é uma vergonha para todos nós.
Oiço-o pronunciar o meu nome como se falasse de outrem. Há muito que deixei de ter identidade. Queria sentir que é bom gostar de viver, mas não consigo.
– Adalberto Pais, o senhor é uma vergonha – repete, para se assegurar de que o oiço.
O facto de ser militar e me olhar do alto aumenta a minha pequenez. Deixo a cabeça cair entre as mãos. Porque não me esquecem?
Em silêncio conduz-me até casa, onde a minha filha me espera, para se ocupar de mim. Não sei quando é que os papéis se inverteram. Não me dei conta.
– Papá, come esta sopa quentinha. Deves estar com fome.
Forço um sorriso, mas as lágrimas ameaçam molhá-lo e afasto-me rumo ao quarto. Não quero ver-lhe a piedade nos olhos. E mais uma vez revejo aquela noite. Foi há trinta e dois anos, tantos quanto os anos que Branca Maria completou ontem.
O salão amplo albergava mais de uma centena de pessoas que admiravam as minhas obras. A primeira exposição de um pintor promissor. As críticas não podiam ser melhores. Era o meu sonho tornado realidade. Contra tudo e todos, prosseguira num caminho que me tinham querido vedar.
– Uma pessoa de bem tem um emprego decente, não é artista. – Com esta frase, o meu pai convidara-me a procurar outra morada, e eu fui. Receoso, inseguro, mas com a coragem que o sonho me concedia.
Bendita a hora em que o fiz, pois foi ao percorrer esse caminho não traçado que encontrei Carla.
Enquanto eu imergia na arte, Carla assegurava-se de que a vida prosseguisse serena, não se esquecendo nunca da maior das motivações: o amor.
Por detrás de todas as dificuldades, havia uma força invisível que se fazia maior, tornando-nos capazes de as suplantar, negando qualquer possibilidade de fracasso. Afinal, nós acreditávamos.  
Apesar da barriga que lhe pesava, Carla trabalhara afincadamente na preparação da exposição. Era do nosso sonho que se tratava. Sim, do nosso, porque aquilo que começara por ser a minha razão de acordar, era então a razão de viver de ambos.
Por fim, o dia mais esperado havia chegado. 7 de Abril nascera ensolarado, o céu presenteando-nos com o seu azul mais brilhante. Estávamos nervosos, existe sempre um perigo de insucesso. No entanto, ela disfarçando a insegurança, dizia-me num tom confiante:
– Estão lindos. Amanhã não se falará noutra coisa.
Mas falou-se. Falou-se da sua morte prematura ao dar à luz Branca Maria.
Quando as águas rebentaram, Carla não autorizou que me avisassem. Dissera: «A noite é dele. Deixem-no aproveitar até ao fim. Mais tarde estará connosco.»
Não estive, e é isso que me tortura. Não ter tido a possibilidade de lhe dizer uma última vez o quanto a amava, o quanto a minha alma sem a dela não fazia sentido, o quanto estava derrotado, apesar de vitorioso.
Levaram-me até ao berçário. Ajoelhei-me e comecei a rezar. Quando me ergui, era outro Adalberto que se levantava.
Não havia mais o pintor. Quem ali estava era o pai, o viúvo.
Apesar de não ser grande apreciador de espaços fechados, arranjei um emprego num escritório e arrastei-me ao longo da vida. Com alguns sorrisos forçados e lágrimas escondidas, fui desempenhando o papel de chefe de família. Acho que não me saí de todo mal. Basta olhar para Branca Maria. Não existe pessoa mais doce e, contudo, magoo-a a cada aniversário.
As vozes que se elevam na sala quebram-me o fluxo de pensamentos. Aproximo-me, quero ouvir o que dizem:
 – Quantas vezes ele já te prometeu que ia mudar? Quantas? – A voz do meu genro é dura. Não lhe tiro a razão. Prometi demais e cumpri de menos.
– Sabes como esse dia é difícil para o meu pai. Ele quer celebrar o meu aniversário, mas… – Branca procura justificar os meus atos, fá-lo sempre.
– E celebra a morte da tua mãe! Desculpa, não queria dizer isto. Vês o que ele provoca. Isto vai ter de acabar. Especialmente agora que…
A minha entrada na sala interrompe o desabafo. Ficamos em silêncio tempo demais. As paredes sufocam-me, saio para o jardim e perco-me em lamentos, com pena de mim próprio.
Devo ser um caso perdido, já que os sábios conselhos dos que, ao longo dos anos, cruzaram o meu caminho de pouco serviram.
«Um desgosto não é razão para se desistir.» Quantas vezes, ouvi esta frase? Quantas vezes, pensei dar-lhe ouvidos e o não fiz?
Entrei em casa. A noite havia já caído e eles jantavam. Não me esperaram. Isso deixa-me triste, mas compreendo-os.
Assim que me sento, a minha filha serve-me. Não tenho fome, mas não quero fazer-lhe mais uma desfeita e, com esforço, engulo cada garfada sem lhe tomar o gosto.
– Papá, estive a pensar e…
Olho-a assustado com receio de que me peça para partir. É o meu genro que toma a rédea da situação:
– Isto não é bom para nenhum de nós. Não sei como, mas as coisas vão ter de mudar.
– Eu tenho uma solução. Acho que vai resultar. Só quero que me deem dois ou três dias e confiem em mim. Pode ser? – Como posso eu dizer que não a Branca Maria? – Vou alterar o guião da tua vida, papá – diz, acariciando-me a mão abandonada em cima da mesa.
– Então, vê lá se o guião que lhe vais dar é mesmo bom. – Branca Maria não responde com palavras ao comentário do marido, mas o olhar remete-o ao silêncio.

 
Olho o relógio pela décima vez. Três da manhã, e o sono não vem. O que me estará destinado? Amanhã, termina o prazo que Branca pediu.
Um lar? Será que a minha filha me vai colocar num lar? Deve ser isso. Mas sou ainda tão novo. O espelho não é da mesma opinião, eu sei.
Não haveria muitas mulheres que aguentassem tudo o que a fiz passar.
Assim que a manhã desponta, decido fazer as malas. Não preciso de muita coisa. Uns fatos de treino e pouco mais. Ah! É melhor levar também umas roupas melhores para quando sair com eles ao fim de semana.
Será que me vão buscar aos fins de semana? Se não forem, eu aceito.
– Posso entrar, papá?
Digo-lhe que sim e deixo-me ficar sentado na cama, a mala aos pés.
– Que mala é essa, papá? Vais viajar? Não me avisaste. Onde é que vais?
– Vou para onde me quiseres mandar. Estou pronto. Onde é o lar?
Faço de conta que não percebo a tristeza no seu olhar.
– Anda comigo. – Faço menção de agarrar a mala. – Não. Deixa-a aí.
Conduz-me a uma casa há muito fechada. Fica nas traseiras. Tem servido de depósito. Acho que nunca lá entrei. Então é ali que me vai colocar, como se fosse uma mobília velha. Agora é o meu olhar que se veste de tristeza, espelhando o desgosto que me avassala.
– É para aqui que queres que eu venha? – pergunto-lhe, na vã esperança que o negue, que diga que o meu lugar é ao seu lado, mas só oiço é um singelo:
– Exato!
As mãos tremem-lhe quando mete a chave à porta, e a voz estremece ao declarar:
– Isto é para ti.
Não posso acreditar no que vejo. Não, não pode ser para mim, não é possível.
Percebendo que me é impossível proferir qualquer palavra, Branca respira fundo e torna-se senhora da situação:
– Pois bem, a menina ingénua já teve que chegue por esta vida. Está na altura de se tornar mulher responsável, capaz de mudar o que necessita ser mudado. Sempre desculpei o teu desaparecimento a cada aniversário, o teu regresso envergonhado, a promessa não cumprida de que no próximo ano seria diferente. Agora, basta! Basta de alimentares uma ferida que te destrói. Basta de jogares no lixo um sonho que não era só teu. Senão por ti, por ela deverias tê-lo perseguido, deverias ter dado tudo de ti.
– Mas se foi a pintura que a matou – consigo murmurar.
– Não. Não foi a pintura, nem fui eu, apesar de por muito tempo ter pensado que me culpavas.
– Nunca, filha. Nunca. – Não consigo mais travar as lágrimas.
Ela também não. Procura um lenço no bolso das calças e apressa-se a secá-las. Vejo que está decidida em levar a conversa até ao fim.
– Nesse caso, porque não mo disseste? Porque não me mostraste que a minha história se desligava de uma perda? Porque é que, cada vez que eu celebrava um aniversário, tu te perdias na dor da sua morte?
Não respondo.
– Bem, papá, chegou o momento de curar essa dor. Quero que voltes a pintar. Aqui tens tudo o que precisas. Agora é só buscares a vontade dentro de ti.
– Porquê agora?
– Porque quero que ela… ou ele possa ter no avô o pai que eu nunca tive. Pois é, vou ser mãe. – O olhar de Branca ilumina-se num amor que transborda. Beija-me a face e sai, deixando-me perdido.
Com o olhar percorro a arrecadação transformada em atelier.
– O que será isto? – pergunto-me, descobrindo um embrulho.
Impaciente, rasgo o papel. O olhar radiante de Carla, com a mão pousada sobre a barriga, esbofeteia-me, e o cartão escrito por Branca desperta-me: «Fá-lo por nós duas.»
Escolho um pincel. A mão treme-me. São mais de trinta anos de abstinência. Não sei por onde começar.
Penso em desistir. Coloco a fotografia e o cartão bem na minha frente para me darem força.
Quando começa a fazer-se escuro, dou-me conta que passei o dia sem comer. Vejo a minha imagem no espelho. Esbofeteio-me para sair do marasmo que me impede de dar a primeira pincelada.
Não a posso desiludir. Não, desta vez não posso.
É madrugada, quando saio do atelier. Na casa, o silêncio impera.
Quando, por fim, me deito, estou em paz. Amanhã, Branca Maria verá que a decoração da sala está mais colorida. Espero que goste.

 Quita Miguel

 

domingo, 25 de maio de 2014


DENÚNCIA

Depois de enfiar a cabeça pela porta para se assegurar de que o corredor estava vazio, dirigiu-se para o elevador.
Sentiu-se reconfortado ao verificar que ninguém o abordou até chegar ao -3.

Retirou a gazua do bolso e, num modo silencioso, introduziu-se na sala de arquivo. Sorriu ao descobrir a capa com os documentos que denunciariam o deputado. Mas o sorriso durou pouco.

Antes que compreendesse o que se passava, uma voz atrás de si disse:

– Olha, olha. Não é o enxerido jornalista?

Saltou por cima da mesa, correu até à porta, mas esta fechou-se-lhe na cara.

Agora, estava feito!

Quita Miguel

Desafio Drabble: Aventura

quarta-feira, 21 de maio de 2014


APANHADO

A irmã, sem cerimónias, enfiara-lhe a mão no bolso do casaco e, agora, exibia os malditos números 66 e 99.

– Juro que não sei como isso veio aqui parar.

Desculpas, já as arranjara melhor. Estava perdendo qualidades. Sentia a face queimar como no inferno, e suava em bica debaixo da camisola, ao mesmo tempo que contemplava a prova do seu delito. Pior do que fazer batota, é ser-se apanhado.

Mais uns minutos, e teria conseguido fazer bingo.

 Quita Miguel

 Desafio nº 66 em 77 palavras – números 66 e 99

segunda-feira, 19 de maio de 2014


PARTIDA

– Uau – exclamou Mário, vendo o autocarro que estacionava em frente à escola.

– Rói-te de inveja – disse Martina, sorrindo-lhe em ar de provocação.

– Para com isso – ordenou a professora com rispidez, ao mesmo tempo que organizava a entrega das bagagens.

O cântico dos miúdos aumentava de intensidade.

Junto ao portão, Mário acompanhava a preparação da viagem. Pouco lhe importava ficar em terra. Nunca gostara de acampar. Então porque se sentia assim, quase como se não conseguisse respirar?

Não era o ficar por ali que lhe doía, era aquela saudade de Martina que se amarrara já ao peito e insistia em permanecer.

Quita Miguel

Desafio Drabble: Saudade

quinta-feira, 15 de maio de 2014


Amizade


O cão levantou-se e seguiu-o. Quando viraram a esquina, começou a chover.

Apenas quem os conhecesse bem poderia perceber os leves traços de ansiedade, a indicar que iam numa missão importante.

O duo chegou, por fim, ao destino. Havia sido um longo e molhado caminho, percorrido a pé, até à porta do hospital.

O homem entrou, e o cão permaneceu estático, em silêncio, aguardando, ninguém sabia o quê. Até que, na janela do primeiro andar, surgiu um menino de olhar inquieto. Ao encontrar o que buscava, o sorriso iluminou-se, e a quietude do animal transformou-se num alegre abanar de cauda.

Quita Miguel

Desafio Drabbel: Encontro

segunda-feira, 12 de maio de 2014


Perdão

Ela acompanhava-me como se nada tivesse acontecido, mas eu percebia na sua face a mágoa.
Quis pedir-lhe perdão, mas as palavras atrapalharam-se dentro de mim, criando um terreno montanhoso que me forçava a percorrer. Jamais havia sentido aquela vontade de me redimir e, em simultâneo, a incapacidade de me desculpar.
Durante algum tempo, segui em frente, andando rápido, procurando ignorá-la.

 


De repente, como num passe de mágica, deixei que um «desculpa» preenchesse o ar e então serenei.
Quita Miguel
Desafio RS nº 13 – (palavras obrigatórias) … palavras atrapalharam-se dentro…
http://77palavras.blogspot.pt/

segunda-feira, 5 de maio de 2014


ANTES QUE AS FLORES MURCHEM


 
A porta bateu e a casa ficou, por fim, em silêncio. Camila abriu os olhos. Não precisava mais fingir que dormia. Fixou o olhar vazio no teto e ficou ali imóvel, inerte, sentindo as batidas aceleradas do coração. Procurou esvaziar o pensamento, mas aquela imagem persistente ocupava um espaço que já era seu por direito. Instalara-se bem na dianteira e dominava qualquer outra reflexão que tentasse suplantá-la.

Levantou-se e foi até à cozinha. Precisava comer alguma coisa. Sabia que era necessário, só que a garganta não era da mesma opinião e dificultava a passagem de qualquer alimento. Optou por beber só café. Não era o indicado para o coração já tão veloz, mas por estranho que parecesse, dava-lhe algum conforto.

Arranjou-se e saiu para a rua. Não suportava mais aquelas paredes, que a sufocavam. Se pudesse nem sequer ali dormiria. Andou sem destino, deixando que fossem as pernas a escolher o caminho. Deu-se conta de onde estava, quando se deparou com o portão aberto, desafiando-a. Agora não havia como voltar atrás. Ainda hesitou. Não conseguia dar um passo em frente, mas também não podia retroceder.

– Sente-se bem?

Olhou para o lado. Um velhote, com um ramo de flores na mão, fixava-a com um olhar que ela não saberia dizer se era de pena ou de preocupação. Flores do campo. Por certo, apanhara-as no caminho.

Quis responder-lhe que não, não estava bem, mas não conseguiu articular qualquer palavra e, sem saber porquê, fez um sinal afirmativo com a cabeça. Como lhe era difícil pedir ajuda. O homem prosseguiu caminho com passo lento.

Num impulso Camila entrou, mas não soube por onde seguir. Nunca mais ali voltara desde aquele dia, que procurava relegar, sem sucesso, para os confins da memória. Agora, que ali estava, não sabia em que direção ir. Apática, foi pela direita. Era o trilho que o homem escolhera. Porque não ir no mesmo sentido? Parecia uma opção tão boa como qualquer outra, para quem está sem rumo.

Olhava em volta, mas não reconhecia nada.

– A menina está perdida? Desculpe se a trato assim, mas é tão jovem.

Camila voltou-se e viu o rosto do velhote, que a olhava com um misto de ternura e dó. Ela era, com efeito, digna de compaixão. Não passava de um farrapo do que fora há apenas alguns meses. Sabia que devia reagir e procurava fazê-lo, mas faltava-lhe força até para falar.

– Deixe estar. Não precisa responder. Sei o que está a sentir. Uma perda recente, não é? – O homem fixava-a.

Camila conseguiu confirmar com a cabeça, ao mesmo tempo que deixava escapar uma lágrima.

– O tempo ajudá-la-á, ele sempre ajuda – sorriu-lhe, com um sorriso triste, e continuou. – Olhe, que tal se dividíssemos este ramo de flores? Tenho a certeza de que a minha Fabiola não se importa.

Deu-lhe metade do ramo. Camila aceitando, conseguiu esboçar um leve sorriso como agradecimento.

– Proponho-lhe uma coisa. A menina acompanha-me até à minha Fabiola, é já ali à frente, e depois eu ajudo-a a encontrar quem procura.

Camila seguiu-o sem se perguntar porquê. Aquela voz acalmava-a, trazia-lhe, ao fim de tantos dias, alguma serenidade.

– É aqui.

O velhote parou, baixou-se, retirou as flores já murchas e substituiu-as pelas novas.

– Bom dia, meu amor. Hoje trouxe uma companhia. É uma menina que sofre, como eu sofri quando te perdi. Hoje a minha saudade é mais suave, mais leve, como a dela será um dia. Esta semana tenho estado melhor. O reumático não me tem aborrecido tanto. Sabes que o nosso neto passou de ano? É verdade, já está no quinto ano e está todo orgulhoso. Agora vou indo. Há aqui alguém que precisa de mim. Sei que me compreendes. Te amo muito.

Camila não se conseguiu conter mais, lançando-se num choro convulsivo. Perante aquela manifestação de amor que transpunha a vida, não pôde suster mais os sentimentos que reprimia dentro de si.

O velhote levantou-se e abraçou-a.

– Chore minha filha, chore que lhe faz bem. E agora diga-me lá, quem é que a menina procura?

– O meu filho.

– Então vamos lá encontrar o seu filho.

Não muito longe dali estava Igor, um menino de apenas três anos que uma meningite, detetada tarde demais, arrancara do convívio de todos.

Quando Camila olhou para a campa do filho acalmou, como que por magia. Sem pressa, ajoelhou-se e rezou. À medida que rezava, o coração ia ficando cada vez mais sereno e cheio de amor. Colocou as flores que o homem lhe dera e disse:

– Olá meu amor. É a mamã que está aqui. Desculpa não ter vindo mais cedo, mas a mamã não se tem sentido muito bem. Olha, trouxe comigo um amigo, foi ele que me conduziu de novo até junto de ti. Agora tenho de ir, mas fica tranquilo que a mamã vai voltar sempre. A mamã vai voltar antes que as flores murchem.
 
Quita Miguel

 

domingo, 4 de maio de 2014


Peruca

– Cento e qualquer coisa – disse Maria Ana.

– E tu achas que eu sou louco de esbanjar dinheiro dessa maneira? – perguntou o pai, realçando o mau-humor com que iniciava cada manhã.

A rapariga afastou-se, o olhar baixo. Um olhar de meditação, não de derrota.

Remexeu na cesta de tricot da avó e, com paciência e desvelo, foi entrelaçando cada fio.

Espreitou na porta do quarto e vendo que a mãe estava acordada, sentou-se ao seu lado e, num gesto de ternura, colocou-lhe a peruca de lã na cabeça.

– Mamã, ficas tão linda, mais do que quando tinhas cabelo. Pareces um arco-íris.
 
Quita Miguel
 
Drabble: tema - Mãe

sexta-feira, 2 de maio de 2014

A ARMADILHA
– Quem te contratou? – perguntaram-lhe pela terceira vez, e pela terceira vez permaneceu em silêncio.
Estava habituada a estes exercícios. Quantos fizera? Quinze, vinte? Não sabia e isso pouco importava. O que a perturbava era...
o facto de se ter deixado apanhar. Ela, Pastorisa, fora a melhor do curso, como não vira a armadilha que se delineava?
Refletia sobre isso, quando sentiu o cão roer a corda que a amarrava. Respirou fundo. Seria vencedora também na vida real.

Quita Miguel
Desafio nº 65 em 77 Palavras – chamavam-lhe Pastorisa