segunda-feira, 5 de maio de 2014


ANTES QUE AS FLORES MURCHEM


 
A porta bateu e a casa ficou, por fim, em silêncio. Camila abriu os olhos. Não precisava mais fingir que dormia. Fixou o olhar vazio no teto e ficou ali imóvel, inerte, sentindo as batidas aceleradas do coração. Procurou esvaziar o pensamento, mas aquela imagem persistente ocupava um espaço que já era seu por direito. Instalara-se bem na dianteira e dominava qualquer outra reflexão que tentasse suplantá-la.

Levantou-se e foi até à cozinha. Precisava comer alguma coisa. Sabia que era necessário, só que a garganta não era da mesma opinião e dificultava a passagem de qualquer alimento. Optou por beber só café. Não era o indicado para o coração já tão veloz, mas por estranho que parecesse, dava-lhe algum conforto.

Arranjou-se e saiu para a rua. Não suportava mais aquelas paredes, que a sufocavam. Se pudesse nem sequer ali dormiria. Andou sem destino, deixando que fossem as pernas a escolher o caminho. Deu-se conta de onde estava, quando se deparou com o portão aberto, desafiando-a. Agora não havia como voltar atrás. Ainda hesitou. Não conseguia dar um passo em frente, mas também não podia retroceder.

– Sente-se bem?

Olhou para o lado. Um velhote, com um ramo de flores na mão, fixava-a com um olhar que ela não saberia dizer se era de pena ou de preocupação. Flores do campo. Por certo, apanhara-as no caminho.

Quis responder-lhe que não, não estava bem, mas não conseguiu articular qualquer palavra e, sem saber porquê, fez um sinal afirmativo com a cabeça. Como lhe era difícil pedir ajuda. O homem prosseguiu caminho com passo lento.

Num impulso Camila entrou, mas não soube por onde seguir. Nunca mais ali voltara desde aquele dia, que procurava relegar, sem sucesso, para os confins da memória. Agora, que ali estava, não sabia em que direção ir. Apática, foi pela direita. Era o trilho que o homem escolhera. Porque não ir no mesmo sentido? Parecia uma opção tão boa como qualquer outra, para quem está sem rumo.

Olhava em volta, mas não reconhecia nada.

– A menina está perdida? Desculpe se a trato assim, mas é tão jovem.

Camila voltou-se e viu o rosto do velhote, que a olhava com um misto de ternura e dó. Ela era, com efeito, digna de compaixão. Não passava de um farrapo do que fora há apenas alguns meses. Sabia que devia reagir e procurava fazê-lo, mas faltava-lhe força até para falar.

– Deixe estar. Não precisa responder. Sei o que está a sentir. Uma perda recente, não é? – O homem fixava-a.

Camila conseguiu confirmar com a cabeça, ao mesmo tempo que deixava escapar uma lágrima.

– O tempo ajudá-la-á, ele sempre ajuda – sorriu-lhe, com um sorriso triste, e continuou. – Olhe, que tal se dividíssemos este ramo de flores? Tenho a certeza de que a minha Fabiola não se importa.

Deu-lhe metade do ramo. Camila aceitando, conseguiu esboçar um leve sorriso como agradecimento.

– Proponho-lhe uma coisa. A menina acompanha-me até à minha Fabiola, é já ali à frente, e depois eu ajudo-a a encontrar quem procura.

Camila seguiu-o sem se perguntar porquê. Aquela voz acalmava-a, trazia-lhe, ao fim de tantos dias, alguma serenidade.

– É aqui.

O velhote parou, baixou-se, retirou as flores já murchas e substituiu-as pelas novas.

– Bom dia, meu amor. Hoje trouxe uma companhia. É uma menina que sofre, como eu sofri quando te perdi. Hoje a minha saudade é mais suave, mais leve, como a dela será um dia. Esta semana tenho estado melhor. O reumático não me tem aborrecido tanto. Sabes que o nosso neto passou de ano? É verdade, já está no quinto ano e está todo orgulhoso. Agora vou indo. Há aqui alguém que precisa de mim. Sei que me compreendes. Te amo muito.

Camila não se conseguiu conter mais, lançando-se num choro convulsivo. Perante aquela manifestação de amor que transpunha a vida, não pôde suster mais os sentimentos que reprimia dentro de si.

O velhote levantou-se e abraçou-a.

– Chore minha filha, chore que lhe faz bem. E agora diga-me lá, quem é que a menina procura?

– O meu filho.

– Então vamos lá encontrar o seu filho.

Não muito longe dali estava Igor, um menino de apenas três anos que uma meningite, detetada tarde demais, arrancara do convívio de todos.

Quando Camila olhou para a campa do filho acalmou, como que por magia. Sem pressa, ajoelhou-se e rezou. À medida que rezava, o coração ia ficando cada vez mais sereno e cheio de amor. Colocou as flores que o homem lhe dera e disse:

– Olá meu amor. É a mamã que está aqui. Desculpa não ter vindo mais cedo, mas a mamã não se tem sentido muito bem. Olha, trouxe comigo um amigo, foi ele que me conduziu de novo até junto de ti. Agora tenho de ir, mas fica tranquilo que a mamã vai voltar sempre. A mamã vai voltar antes que as flores murchem.
 
Quita Miguel

 

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