segunda-feira, 30 de junho de 2014


EXIBIDO

– Podíamos combinar um café… – sugeri com um ligeiro tremor, enquanto a tua boca permanecia estanque.

Contudo, uma tarde chegaste, sem teres prometido, deixando-me de boca aberta.

No início, fez-se silêncio, o fogo a invadir-me a cara. À hesitação de te cumprimentar, seguiu-se um gesto intempestivo, que entornou o café. Desajeitada, pedi um pano.

Não sei o que terás pensado, pois apenas te sentaste e iniciaste um monólogo, exibindo o teu conhecimento. Eu, como desforra, fechei os ouvidos.
 
Quita Miguel

Desafio nº 69 em 77 palavras – lista de palavras, onde se inclui desforra

quarta-feira, 25 de junho de 2014


E FAZ-SE NOITE… E FAZ-SE DIA

 
Todas as noites nasço e todos os dias morro e de novo me refaço, tão precisa como o sol que se segue à lua. Umas vezes de aparência escura e densa, outras brilhante e acolhedora, mas sempre presente. Hoje, celebrando o início do verão, nasci matizada de brilho com contornos de nuvens, que a brisa desfaz.

Sou senhora de mil nomes: noite, trevas, escuridão, sombra, negrume…

Vivo só e, como num pesadelo, condenada a vaguear pela eternidade que nem alma errante. Procuro escapar ao vazio e vigio os sonhos que preenchem o ar. Nunca há um sonho completo, perfeito, satisfatório em absoluto. Mas são apenas isso, sonhos. Então porque seriam perfeitos? Nada o é, nem a Terra, que aqui e ali se eleva em grandes colinas cónicas, algumas cobertas de cedros ou carvalhos que, no topo, adensam a floresta. O solo é escuro e rico em tons castanho-avermelhado com laivos negros, adornado de ervas daninhas. É um bom lugar, suficientemente perto do céu, suficientemente longe do homem. Ao seu redor, as nuvens flutuam de espanto e incredulidade.

Lá em baixo, o lago reflete o firmamento, rodeado de tenebrosas grutas. Por um instante, deixo o olhar percorrer, ao de leve, o velho caminho romano que se avista do alto da muralha. Fico imóvel, maravilhada. Lugar de encantamento, de feitiço, de mistério que acolho com agrado. O poder da magia é grande, quase tão grande como o da perda que sobrevoa a cidade de todos os demónios. Quase tão cativante como o meu espetáculo mudo, que atrai uns e apavora outros.

No escuro, os caminhos são traiçoeiros. As criaturas selvagens conhecem a necessidade de se esconder, de fugir, de procurar refúgio, de desaparecer na noite, eu seja, em mim. Os demónios noturnos são poderosos. Bravura, medo, calor, frio, perigo, abrigo, solidão, angústia, tudo isto sou e tudo isso, tal como a floresta que protege os seus, vos dou. E por isso, tantas vezes, me olham de soslaio, com verdadeira desconfiança.

O vento que venta através dos ramos das árvores, soprando as folhas de um lado para o outro, murmura com suavidade uma pequena canção monótona, sem princípio nem fim, louvando a minha quietude. Cai um fruto maduro, os corvos vêm e debicam-no até ao último bocado. Por uns momentos, faz-se silêncio.

Observo longas e amáveis conversas sobre a vida e a morte, lamentos profundos, hinos histéricos, como um zeloso guardião dos murmúrios noturnos. De repente, sinto-me aborrecida.

Oiço homens a falarem sobre cavalos, antecipando animados a chegada a casa, a comida, o vinho e um coração quente. Falam das colheitas e do gado, do bem-estar dos camponeses. Escuto as conversas, se bem que as vozes sejam abafadas. Observo a cavalgada, subindo a ravina, por onde corre um ribeiro.

Ocorre-me que, devido ao meu silêncio, já que nunca lhes posso responder, eles falam comigo como se falassem consigo mesmos, colocando os pensamentos em ordem.

Lá em baixo, um cão muito pequeno, velho e pardacento, olha-me com olhos tristes, remelosos, abanando a cauda gentilmente. Vive de modo selvagem há quase um ano. Inspeciona a área em volta com cuidado, farejando com calma e por ali fica, numa longa vigília até de madrugada. Fico a contemplar, ao pormenor, aquela imagem de velho que parece regozijar-se na sua decrepitude. Enterneço-me.

Uma família de ouriços-cacheiros aventura-se sob os arbustos, até perto da pedra lisa da margem da pequena corrente, onde as árvores crescem perto da água. Um pássaro solitário começa a cantar lá em cima, nos olmeiros. Mais longe, vêem-se os rouxinóis em triste cativeiro.

Já alguém se espreguiça devagar. O coro das aves aumenta.

Não tarda, ouvem-se os primeiros ruídos das casas que despertam. Na casa de banho, uma mulher põe a touca para o duche.

O dia está prestes a chegar e, resignada, empalideço de horror. Como tudo se acaba neste mundo, de novo morro, no esgotante exercício de me recolher.

Quita Miguel

domingo, 22 de junho de 2014


Abraço

Sempre que chegavas, carregavas nos braços um abraço apertado, que eu procurava afrouxar, reclamando:
– Ó avô cuidado que me amachucas toda.
Hoje, tudo o que queria era poder refugiar-me nesses braços preenchidos de saudade, mas fico por aqui, atirada no sofá, como uma folha de papel que amachucamos porque expôs a palavra errada.
Se pedir desculpa talvez voltes. É isso. Calço-me com pressa, pego o carro e rumo para a aldeia. À noitinha terei o teu abraço.
Quita Miguel 
Desafio nº 68 em 77 palavras – imagem de uma folha amarrotada

terça-feira, 17 de junho de 2014


UM DIA DE PESCA


Da janela da casa onde mora, Filipa Andreia observa Alves que rema ao sabor da corrente. Por vezes, lança a rede na mera esperança de que o sável, distraído, se deixe capturar. Outras vezes, atira-a com raiva por o rio não lhe retribuir o amor que lhe dedica.

O ramo, junto à janela, agita-se quando a maré muda, e o vento ganha força. Filipa sobressalta-se, mas logo se aquieta e pensa: «Um dia ainda me levas contigo.»

Quita Miguel

Desafio em 77 palavras – três trios de palavras em anagrama.

segunda-feira, 16 de junho de 2014


BATISMO DA TERRA
 

A onda de pó que se perdia no horizonte recordava-lhe que os últimos haviam partido. Pouco a pouco, todos haviam sucumbido àquela terra gretada e sem vida. Só ele permanecia ali, fiel ao lugar que sempre fora seu. Ali nascera, ali se criara e virara homem, ali gerara família e a perdera também. Ali fora feliz e triste, ali rira e chorara, ali acreditara e perdera a esperança.

Com os olhos secos daquele ar agreste, percorreu a imensidão que outrora fora verdejante, de um verde tão intenso que magoava a vista. Agora tudo era castanho, umas vezes claro quase a tocar o bege, outras, mais escuro, relembrando-lhe o cabelo dos filhos que ganharam a cidade. Ia para três anos que não caía uma gota de água. Tudo definhara à sua volta. Até ele estava seco. Aquela poeira agarrava-se-lhe aos poros, entrava-lhe pela garganta e forrava-lhe o estômago. Já não sentia fome, sede sim. Mas aprendera a controlá-la. Teria água para mais uma semana, depois seria o fim.

Por isso, todos partiram. Mas ele não podia. Para onde iria? Aquele era o seu mundo, nunca conhecera outro. Ali permaneceria até ao fim, apesar de se sentir traído por aquele terra de que tão bem cuidara. Prometera-lhe abundância em troca do trabalho que ele lhe dedicara e durante algum tempo fora-lhe fiel, retribuindo-lhe o suor que ele lhe consagrava. Mas de um momento para o outro, ela deixara de colaborar. Os pastos foram secando um a um, os animais emagrecendo e a terra tornara-se cada vez mais rude, com gretas que lhe acentuam a secura. Ele olhava-a com a mesma ternura de sempre, e ela respondia-lhe com aquela frieza que lhe doía a alma.

O sol, esse queimava-lhe a pele e ressequia-lhe os ossos. Também ele, dentro em pouco, abriria gretas.

O céu era de um azul que feria pela intensidade da luz, obrigando-o a semicerrar os olhos.

Percorreu a rua, ignorando as casas, agora vazias de vozes, de reboliço, de gente. Era como atravessar uma cidade fantasma dos filmes do oeste que vira em miúdo, quando o cinema ambulante percorria o interior, e a noite de cinema era noite de festa.

Há muito que nada se festejava por ali. Tinham começado por pedir, depois rezar e por fim implorar, mas nada fazia com que a chuva caísse. Por vezes, surgiam algumas nuvens, mas delas nada brotava. Era como se a chuva estivesse suspensa no ar e teimasse não cair.

Com lentidão, aproximou-se do leito do rio. Concentrou-se, procurando recordar-se do barulho da água a correr. O rosto marcado pelo tempo encheu-se de rugas. A sua pele estava tão seca quanto aquele solo que fendia. Apesar disso, agarrava-se obstinado àquele pedaço de terra.

Deitou-se naquele manto de pó e fechou os olhos. O sol queimava-lhe a face, mas isso que lhe importava? Dentro de uma semana, tudo estaria terminado. Uma sombra inesperada cobriu-lhe o corpo. Quem seria que voltara para trás? Estava demasiado cansado para abrir os olhos e isso também pouco interessava, bastava sentir que alguém se interpunha entre ele e o sol. Sabia-lhe bem aquela fresquidão súbita.

Depois, sentiu algo molhado no rosto. Mas cuspiam-lhe na cara? Não podia crer. Quem poderia humilhá-lo de tal modo? Não bastava já, ser o espelho da própria derrota?

Abriu os olhos e procurou o desaforado que se atrevia a tal, mas em toda a imensidão que a visão alcançava, não se vislumbrava vivalma. Estaria a ficar louco? Ouvira contar que a falta de água provoca alucinações. De repente, sentiu um novo contacto frio com a pele e virou-se em direção ao céu que agora se vestia de cinzento-escuro. 

Um pingo caiu-lhe na cara e depois deste, outro e outro e outro. Eram gotas de chuva que lhe acariciavam o rosto, lhe amaciavam a pele, lhe afagavam os cabelos. Em poucos minutos a terra seca transformou-se na lama em que se deitou, rolando como uma criança, que tudo o que quer é sentir o aconchego da terra.

Abriu a boca e deixou que as gotas de chuva, uma a uma, lhe penetrassem na garganta e lhe refrescassem a alma. Fechou os olhos e ouviu o barulho do rio que com timidez voltava a correr. Era como se Deus estivesse batizando a terra e, nesse batismo, abençoando o futuro.

Ajoelhou-se e chorou, agora não mais de desespero, mas de agradecimento. A chuva estava de volta e com ela a vida.

Quita Miguel

 

quinta-feira, 5 de junho de 2014


ESCREVER UM NOVO FIM

O vento fustigava as árvores, que se curvavam à sua força. Os ramos balançavam como geridos por um maestro que marcava o ritmo. O sol começava a pôr-se naquele final de tarde, de um dia que parecia não querer terminar. Eram assim os dias de verão.

Xerazade observava a luta da natureza, recordando-se da sua.

A ela o vento, apesar de forte, não flagelava. Pelo contrário, acariciava-lhe a cara ao ritmo da cadeira de baloiço, que fazia ranger o soalho do alpendre.

Os olhos seguiam o movimento dos ramos das árvores e fixavam-se nas folhas. Umas seguravam-se com a força que a seiva lhes doava, recusando-se a terminar ali a vida. Outras, já cansadas, desprendiam-se e desciam com suavidade para atapetar o chão.

Levou a mão à pulseira que lhe cobria o pulso direito e passou os dedos pela inscrição: “Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim.” Fora essa frase de Chico Xavier que lhe dera coragem para gritar basta e procurar um novo rumo.

Numa cama de hospital, após mais uma das inúmeras «quedas», que a haviam tornado cliente assídua daquela instituição, conhecera Vitória. Dividiam o mesmo quarto. Vitória olhara-a sem crítica, até mesmo com ternura, mas deixando transparecer, sem margem para dúvida, que não acreditava ter-se tratado de um trambolhão.

«Devemos ter a coragem de pedir ajuda, quando não nos podemos ajudar a nós próprios», dissera-lhe ao partir. Depois, pusera-lhe um livro entre as mãos, sorrira e desaparecera no corredor.

Ao abrir o livro, Xerazade encontrara aquela frase sublinhada. Vira nela a força que lhe faltava para procurar uma saída.

Nesse mesmo dia, denunciou o marido por maus tratos, ultrapassando a vergonha e o medo, que a haviam mantido, por demasiado tempo, submersa da realidade.

Passou a mão na coxa e sentiu a cicatriz. A marca permanecia ali para que nunca se esquecesse de como fora submissa nos últimos anos. Não por um prazer mórbido de reviver a amargura, mas para se recordar que tivera coragem de ultrapassar a barreira que a separava da vida, porque viver sem liberdade era o mesmo que estar morta, e ela fora um ser apagado por mais de dez anos.

A mãe dera-lhe um nome raro, inspirada nas mil e uma noites, acreditando que ele traria a magia à sua vida. Uma magia que se transformara em pesadelo. Uma angústia a que tivera a coragem de pôr fim.

Por isso, o vento a acariciava em vez de a açoitar, porque agora estava livre. Livre dos gritos, dos estalos, dos empurrões, dos avanços incontrolados, livre do terror que lhe tolhia qualquer reação. Tapava os ouvidos porque não lhe suportava sequer a voz, e deixava-se ficar num canto, como um saco de pancada, até que ele se cansasse e a deixasse em paz. Uma paz que duraria somente até à próxima vez. Uma próxima vez, cada vez mais frequente e mais intensa.

Uma intensidade que a catapultava ao desespero de se sentir impotente para o enfrentar, para lhe dizer que não lhe era inferior, que era apenas fisicamente mais fraca, mas que isso não fazia dela um ser menor. Mas as palavras calavam-se-lhe na garganta, aprisionadas pelo soluço que procurava engolir.

Olhou a natureza que a circundava e sorriu. Agora, sentia-se digna de a contemplar, porque possuía a força que lhe permitia andar de cabeça erguida, olhar as pessoas de frente, agarrar o mundo com ambas as mãos.

O coração estava para sempre rachado e era provável que nunca se recompusesse, mas seguia um dia de cada vez e superava, um por um, todos os obstáculos que se lhe deparavam, porque acreditava na vida, na fé e em si.

Compreendera que é sempre tempo de recomeçar, por isso, ao sair do tribunal no dia em que o marido fora condenado, mandara gravar aquela pulseira. Era de madeira, pouco valiosa em termos monetários, mas com um valor inestimável de esperança. Esperança de quem tivera a audácia de começar a escrever um novo fim.

Quita Miguel

quarta-feira, 4 de junho de 2014


O ENFEITE
 

Hortência endireitou as costas, entufou o peito e olhou-o entusiasmada. Ele hesitou. Aquilo que ela apelidava de enfeite era único e…

Aproveita para mostrar alguma coragem – espicaçou-o Hortência.

O conceito de corajoso não o entusiasmava. Anunciava sarilhos, mas dizer-lhe que não teria um efeito ainda pior.

Espreitou pela fechadura, consciente da falta de respeito. Avançou e quando a mão estava prestes a alcançar o objeto, algo lhe agarrou o ombro. Num relance reconheceu a mão da diretora.

Quita Miguel

Desafio em 77 palavras: 8 vezes EIT.