E FAZ-SE NOITE… E FAZ-SE DIA
Todas
as noites nasço e todos os dias morro e de novo me refaço, tão precisa como o
sol que se segue à lua. Umas vezes de aparência escura e densa, outras
brilhante e acolhedora, mas sempre presente. Hoje, celebrando o início do
verão, nasci matizada de brilho com contornos de nuvens, que a brisa desfaz.
Sou
senhora de mil nomes: noite, trevas, escuridão, sombra, negrume…
Vivo
só e, como num pesadelo, condenada a vaguear pela eternidade que nem alma
errante. Procuro escapar ao vazio e vigio os sonhos que preenchem o ar. Nunca
há um sonho completo, perfeito, satisfatório em absoluto. Mas são apenas isso,
sonhos. Então porque seriam perfeitos? Nada o é, nem a Terra, que aqui e ali se
eleva em grandes colinas cónicas, algumas cobertas de cedros ou carvalhos que, no
topo, adensam a floresta. O solo é escuro e rico em tons castanho-avermelhado
com laivos negros, adornado de ervas daninhas. É um bom lugar, suficientemente
perto do céu, suficientemente longe do homem. Ao seu redor, as nuvens flutuam
de espanto e incredulidade.
Lá
em baixo, o lago reflete o firmamento, rodeado de tenebrosas grutas. Por um
instante, deixo o olhar percorrer, ao de leve, o velho caminho romano que se
avista do alto da muralha. Fico imóvel, maravilhada. Lugar de encantamento, de
feitiço, de mistério que acolho com agrado. O poder da magia é grande, quase
tão grande como o da perda que sobrevoa a cidade de todos os demónios. Quase
tão cativante como o meu espetáculo mudo, que atrai uns e apavora outros.
No
escuro, os caminhos são traiçoeiros. As criaturas selvagens conhecem a
necessidade de se esconder, de fugir, de procurar refúgio, de desaparecer na
noite, eu seja, em mim. Os demónios noturnos são poderosos. Bravura, medo,
calor, frio, perigo, abrigo, solidão, angústia, tudo isto sou e tudo isso, tal
como a floresta que protege os seus, vos dou. E por isso, tantas vezes, me
olham de soslaio, com verdadeira desconfiança.
O
vento que venta através dos ramos das árvores, soprando as folhas de um lado
para o outro, murmura com suavidade uma pequena canção monótona, sem princípio
nem fim, louvando a minha quietude. Cai um fruto maduro, os corvos vêm e
debicam-no até ao último bocado. Por uns momentos, faz-se silêncio.
Observo
longas e amáveis conversas sobre a vida e a morte, lamentos profundos, hinos
histéricos, como um zeloso guardião dos murmúrios noturnos. De repente,
sinto-me aborrecida.
Oiço
homens a falarem sobre cavalos, antecipando animados a chegada a casa, a
comida, o vinho e um coração quente. Falam das colheitas e do gado, do bem-estar
dos camponeses. Escuto as conversas, se bem que as vozes sejam abafadas. Observo
a cavalgada, subindo a ravina, por onde corre um ribeiro.
Ocorre-me
que, devido ao meu silêncio, já que nunca lhes posso responder, eles falam
comigo como se falassem consigo mesmos, colocando os pensamentos em ordem.
Lá
em baixo, um cão muito pequeno, velho e pardacento, olha-me com olhos tristes,
remelosos, abanando a cauda gentilmente. Vive de modo selvagem há quase um ano.
Inspeciona a área em volta com cuidado, farejando com calma e por ali fica,
numa longa vigília até de madrugada. Fico a contemplar, ao pormenor, aquela
imagem de velho que parece regozijar-se na sua decrepitude. Enterneço-me.
Uma
família de ouriços-cacheiros aventura-se sob os arbustos, até perto da pedra
lisa da margem da pequena corrente, onde as árvores crescem perto da água. Um
pássaro solitário começa a cantar lá em cima, nos olmeiros. Mais longe, vêem-se
os rouxinóis em triste cativeiro.
Já
alguém se espreguiça devagar. O coro das aves aumenta.
Não
tarda, ouvem-se os primeiros ruídos das casas que despertam. Na casa de banho,
uma mulher põe a touca para o duche.
O
dia está prestes a chegar e, resignada, empalideço de horror. Como tudo se
acaba neste mundo, de novo morro, no esgotante exercício de me recolher.
Quita
Miguel