segunda-feira, 16 de junho de 2014


BATISMO DA TERRA
 

A onda de pó que se perdia no horizonte recordava-lhe que os últimos haviam partido. Pouco a pouco, todos haviam sucumbido àquela terra gretada e sem vida. Só ele permanecia ali, fiel ao lugar que sempre fora seu. Ali nascera, ali se criara e virara homem, ali gerara família e a perdera também. Ali fora feliz e triste, ali rira e chorara, ali acreditara e perdera a esperança.

Com os olhos secos daquele ar agreste, percorreu a imensidão que outrora fora verdejante, de um verde tão intenso que magoava a vista. Agora tudo era castanho, umas vezes claro quase a tocar o bege, outras, mais escuro, relembrando-lhe o cabelo dos filhos que ganharam a cidade. Ia para três anos que não caía uma gota de água. Tudo definhara à sua volta. Até ele estava seco. Aquela poeira agarrava-se-lhe aos poros, entrava-lhe pela garganta e forrava-lhe o estômago. Já não sentia fome, sede sim. Mas aprendera a controlá-la. Teria água para mais uma semana, depois seria o fim.

Por isso, todos partiram. Mas ele não podia. Para onde iria? Aquele era o seu mundo, nunca conhecera outro. Ali permaneceria até ao fim, apesar de se sentir traído por aquele terra de que tão bem cuidara. Prometera-lhe abundância em troca do trabalho que ele lhe dedicara e durante algum tempo fora-lhe fiel, retribuindo-lhe o suor que ele lhe consagrava. Mas de um momento para o outro, ela deixara de colaborar. Os pastos foram secando um a um, os animais emagrecendo e a terra tornara-se cada vez mais rude, com gretas que lhe acentuam a secura. Ele olhava-a com a mesma ternura de sempre, e ela respondia-lhe com aquela frieza que lhe doía a alma.

O sol, esse queimava-lhe a pele e ressequia-lhe os ossos. Também ele, dentro em pouco, abriria gretas.

O céu era de um azul que feria pela intensidade da luz, obrigando-o a semicerrar os olhos.

Percorreu a rua, ignorando as casas, agora vazias de vozes, de reboliço, de gente. Era como atravessar uma cidade fantasma dos filmes do oeste que vira em miúdo, quando o cinema ambulante percorria o interior, e a noite de cinema era noite de festa.

Há muito que nada se festejava por ali. Tinham começado por pedir, depois rezar e por fim implorar, mas nada fazia com que a chuva caísse. Por vezes, surgiam algumas nuvens, mas delas nada brotava. Era como se a chuva estivesse suspensa no ar e teimasse não cair.

Com lentidão, aproximou-se do leito do rio. Concentrou-se, procurando recordar-se do barulho da água a correr. O rosto marcado pelo tempo encheu-se de rugas. A sua pele estava tão seca quanto aquele solo que fendia. Apesar disso, agarrava-se obstinado àquele pedaço de terra.

Deitou-se naquele manto de pó e fechou os olhos. O sol queimava-lhe a face, mas isso que lhe importava? Dentro de uma semana, tudo estaria terminado. Uma sombra inesperada cobriu-lhe o corpo. Quem seria que voltara para trás? Estava demasiado cansado para abrir os olhos e isso também pouco interessava, bastava sentir que alguém se interpunha entre ele e o sol. Sabia-lhe bem aquela fresquidão súbita.

Depois, sentiu algo molhado no rosto. Mas cuspiam-lhe na cara? Não podia crer. Quem poderia humilhá-lo de tal modo? Não bastava já, ser o espelho da própria derrota?

Abriu os olhos e procurou o desaforado que se atrevia a tal, mas em toda a imensidão que a visão alcançava, não se vislumbrava vivalma. Estaria a ficar louco? Ouvira contar que a falta de água provoca alucinações. De repente, sentiu um novo contacto frio com a pele e virou-se em direção ao céu que agora se vestia de cinzento-escuro. 

Um pingo caiu-lhe na cara e depois deste, outro e outro e outro. Eram gotas de chuva que lhe acariciavam o rosto, lhe amaciavam a pele, lhe afagavam os cabelos. Em poucos minutos a terra seca transformou-se na lama em que se deitou, rolando como uma criança, que tudo o que quer é sentir o aconchego da terra.

Abriu a boca e deixou que as gotas de chuva, uma a uma, lhe penetrassem na garganta e lhe refrescassem a alma. Fechou os olhos e ouviu o barulho do rio que com timidez voltava a correr. Era como se Deus estivesse batizando a terra e, nesse batismo, abençoando o futuro.

Ajoelhou-se e chorou, agora não mais de desespero, mas de agradecimento. A chuva estava de volta e com ela a vida.

Quita Miguel

 

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