quarta-feira, 25 de junho de 2014


E FAZ-SE NOITE… E FAZ-SE DIA

 
Todas as noites nasço e todos os dias morro e de novo me refaço, tão precisa como o sol que se segue à lua. Umas vezes de aparência escura e densa, outras brilhante e acolhedora, mas sempre presente. Hoje, celebrando o início do verão, nasci matizada de brilho com contornos de nuvens, que a brisa desfaz.

Sou senhora de mil nomes: noite, trevas, escuridão, sombra, negrume…

Vivo só e, como num pesadelo, condenada a vaguear pela eternidade que nem alma errante. Procuro escapar ao vazio e vigio os sonhos que preenchem o ar. Nunca há um sonho completo, perfeito, satisfatório em absoluto. Mas são apenas isso, sonhos. Então porque seriam perfeitos? Nada o é, nem a Terra, que aqui e ali se eleva em grandes colinas cónicas, algumas cobertas de cedros ou carvalhos que, no topo, adensam a floresta. O solo é escuro e rico em tons castanho-avermelhado com laivos negros, adornado de ervas daninhas. É um bom lugar, suficientemente perto do céu, suficientemente longe do homem. Ao seu redor, as nuvens flutuam de espanto e incredulidade.

Lá em baixo, o lago reflete o firmamento, rodeado de tenebrosas grutas. Por um instante, deixo o olhar percorrer, ao de leve, o velho caminho romano que se avista do alto da muralha. Fico imóvel, maravilhada. Lugar de encantamento, de feitiço, de mistério que acolho com agrado. O poder da magia é grande, quase tão grande como o da perda que sobrevoa a cidade de todos os demónios. Quase tão cativante como o meu espetáculo mudo, que atrai uns e apavora outros.

No escuro, os caminhos são traiçoeiros. As criaturas selvagens conhecem a necessidade de se esconder, de fugir, de procurar refúgio, de desaparecer na noite, eu seja, em mim. Os demónios noturnos são poderosos. Bravura, medo, calor, frio, perigo, abrigo, solidão, angústia, tudo isto sou e tudo isso, tal como a floresta que protege os seus, vos dou. E por isso, tantas vezes, me olham de soslaio, com verdadeira desconfiança.

O vento que venta através dos ramos das árvores, soprando as folhas de um lado para o outro, murmura com suavidade uma pequena canção monótona, sem princípio nem fim, louvando a minha quietude. Cai um fruto maduro, os corvos vêm e debicam-no até ao último bocado. Por uns momentos, faz-se silêncio.

Observo longas e amáveis conversas sobre a vida e a morte, lamentos profundos, hinos histéricos, como um zeloso guardião dos murmúrios noturnos. De repente, sinto-me aborrecida.

Oiço homens a falarem sobre cavalos, antecipando animados a chegada a casa, a comida, o vinho e um coração quente. Falam das colheitas e do gado, do bem-estar dos camponeses. Escuto as conversas, se bem que as vozes sejam abafadas. Observo a cavalgada, subindo a ravina, por onde corre um ribeiro.

Ocorre-me que, devido ao meu silêncio, já que nunca lhes posso responder, eles falam comigo como se falassem consigo mesmos, colocando os pensamentos em ordem.

Lá em baixo, um cão muito pequeno, velho e pardacento, olha-me com olhos tristes, remelosos, abanando a cauda gentilmente. Vive de modo selvagem há quase um ano. Inspeciona a área em volta com cuidado, farejando com calma e por ali fica, numa longa vigília até de madrugada. Fico a contemplar, ao pormenor, aquela imagem de velho que parece regozijar-se na sua decrepitude. Enterneço-me.

Uma família de ouriços-cacheiros aventura-se sob os arbustos, até perto da pedra lisa da margem da pequena corrente, onde as árvores crescem perto da água. Um pássaro solitário começa a cantar lá em cima, nos olmeiros. Mais longe, vêem-se os rouxinóis em triste cativeiro.

Já alguém se espreguiça devagar. O coro das aves aumenta.

Não tarda, ouvem-se os primeiros ruídos das casas que despertam. Na casa de banho, uma mulher põe a touca para o duche.

O dia está prestes a chegar e, resignada, empalideço de horror. Como tudo se acaba neste mundo, de novo morro, no esgotante exercício de me recolher.

Quita Miguel

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