quinta-feira, 5 de junho de 2014


ESCREVER UM NOVO FIM

O vento fustigava as árvores, que se curvavam à sua força. Os ramos balançavam como geridos por um maestro que marcava o ritmo. O sol começava a pôr-se naquele final de tarde, de um dia que parecia não querer terminar. Eram assim os dias de verão.

Xerazade observava a luta da natureza, recordando-se da sua.

A ela o vento, apesar de forte, não flagelava. Pelo contrário, acariciava-lhe a cara ao ritmo da cadeira de baloiço, que fazia ranger o soalho do alpendre.

Os olhos seguiam o movimento dos ramos das árvores e fixavam-se nas folhas. Umas seguravam-se com a força que a seiva lhes doava, recusando-se a terminar ali a vida. Outras, já cansadas, desprendiam-se e desciam com suavidade para atapetar o chão.

Levou a mão à pulseira que lhe cobria o pulso direito e passou os dedos pela inscrição: “Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim.” Fora essa frase de Chico Xavier que lhe dera coragem para gritar basta e procurar um novo rumo.

Numa cama de hospital, após mais uma das inúmeras «quedas», que a haviam tornado cliente assídua daquela instituição, conhecera Vitória. Dividiam o mesmo quarto. Vitória olhara-a sem crítica, até mesmo com ternura, mas deixando transparecer, sem margem para dúvida, que não acreditava ter-se tratado de um trambolhão.

«Devemos ter a coragem de pedir ajuda, quando não nos podemos ajudar a nós próprios», dissera-lhe ao partir. Depois, pusera-lhe um livro entre as mãos, sorrira e desaparecera no corredor.

Ao abrir o livro, Xerazade encontrara aquela frase sublinhada. Vira nela a força que lhe faltava para procurar uma saída.

Nesse mesmo dia, denunciou o marido por maus tratos, ultrapassando a vergonha e o medo, que a haviam mantido, por demasiado tempo, submersa da realidade.

Passou a mão na coxa e sentiu a cicatriz. A marca permanecia ali para que nunca se esquecesse de como fora submissa nos últimos anos. Não por um prazer mórbido de reviver a amargura, mas para se recordar que tivera coragem de ultrapassar a barreira que a separava da vida, porque viver sem liberdade era o mesmo que estar morta, e ela fora um ser apagado por mais de dez anos.

A mãe dera-lhe um nome raro, inspirada nas mil e uma noites, acreditando que ele traria a magia à sua vida. Uma magia que se transformara em pesadelo. Uma angústia a que tivera a coragem de pôr fim.

Por isso, o vento a acariciava em vez de a açoitar, porque agora estava livre. Livre dos gritos, dos estalos, dos empurrões, dos avanços incontrolados, livre do terror que lhe tolhia qualquer reação. Tapava os ouvidos porque não lhe suportava sequer a voz, e deixava-se ficar num canto, como um saco de pancada, até que ele se cansasse e a deixasse em paz. Uma paz que duraria somente até à próxima vez. Uma próxima vez, cada vez mais frequente e mais intensa.

Uma intensidade que a catapultava ao desespero de se sentir impotente para o enfrentar, para lhe dizer que não lhe era inferior, que era apenas fisicamente mais fraca, mas que isso não fazia dela um ser menor. Mas as palavras calavam-se-lhe na garganta, aprisionadas pelo soluço que procurava engolir.

Olhou a natureza que a circundava e sorriu. Agora, sentia-se digna de a contemplar, porque possuía a força que lhe permitia andar de cabeça erguida, olhar as pessoas de frente, agarrar o mundo com ambas as mãos.

O coração estava para sempre rachado e era provável que nunca se recompusesse, mas seguia um dia de cada vez e superava, um por um, todos os obstáculos que se lhe deparavam, porque acreditava na vida, na fé e em si.

Compreendera que é sempre tempo de recomeçar, por isso, ao sair do tribunal no dia em que o marido fora condenado, mandara gravar aquela pulseira. Era de madeira, pouco valiosa em termos monetários, mas com um valor inestimável de esperança. Esperança de quem tivera a audácia de começar a escrever um novo fim.

Quita Miguel

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