CAMINHO INTERROMPIDO
– Mas
que olhar triste é esse?
–
Não vem ninguém. Vais ver que não vem ninguém – lamentou Vitor, olhando
desconsolado a chuva que não parava de cair. Era uma chuva forte, ininterrupta,
gelada, que ameaçava arruinar-lhe o dia de anos.
A
avó, com calma, pegou-lhe na mão e afastou-o da janela.
– Não
é por olhares com fixação a chuva, que ela vai parar de cair. Senta-te aqui.
Vou contar-te uma história.
–
Uma história? – O rapaz animou-se.
–
Sim, uma história que se passou há muitos, muitos anos. Eu era um pouco mais
velha do que tu. Foi no dia em que fiz 15 anos.
A
avó já lhe captara a atenção, antes de ele se sentar no chão de pernas
cruzadas, bem na sua frente, para não perder nem um pedacinho. Gostava quando
ela contava histórias antigas.
–
Naquele dia, coloquei o vestido mais bonito para celebrar a penda que os meus
pais me deram.
–
Como é que se celebra uma prenda? – perguntou Vitor, um pouco perdido.
–
Quando uma prenda não é uma coisa, mas a realização do que mais se deseja.
–
E o que é que tu querias?
–
Conhecer a cidade. Naquele tempo as distâncias eram maiores, e era raro sair-se
da aldeia. Por vários meses, os meus pais puseram de parte cada centavo que
conseguiam poupar e, naquele dia, deram-me o bilhete de comboio. Eu teria de ir
sozinha, porque não havia dinheiro para mais.
–
E foste sozinha para a cidade? – A expressão de Vitor era um misto de admiração
e incerteza.
–
Fui. A minha madrinha estaria à espera na estação. Ela casara com um engenheiro,
e viviam lá há três anos. O meu pai levou-me na carroça até ao comboio. As
pernas tremiam-me de ansiedade, mas também de algum receio quando entrei na
carruagem. Nunca antes saíra da aldeia e tinha uma viagem de três horas pela
frente. O assento ao meu lado estava vazio. Coloquei aí o cesto com os legumes,
as frutas acabadas de colher, o presunto, enfim, algumas oferendas para a
madrinha.
– Ó
avó, mas se eras tu que fazias anos…
–
Pois é, mas naquele tempo era normal levar-se alguns produtos do campo para as
pessoas que se visitava na cidade. Era uma maneira de agradecer a hospitalidade
com que eram recebidos.
– Então
e depois? – quis saber o neto.
– Depois
o comboio partiu. Eu coloquei a cabeça fora da janela, até deixar de avistar o
meu pai ao longe, sempre de braço no ar. Era uma sensação estranha, aquela de o
deixar para trás. O comboio foi avançando, parando em algumas estações até
enfrentar a serra numa subida lenta. Por vezes, parecia mesmo que queria parar.
Atravessámos vales floridos. Nem dava pelo passar do tempo, tão absorvida estava
pela paisagem. Até que, de repente, o comboio parou, ali no meio do nada. Não
se via uma estrada, uma casa, nada.
–
Então porque é que o comboio parou?
– Não
sabíamos. Primeiro ficámos todos calados, esperando que recomeçasse a andar.
Mas nada. Então, algumas pessoas levantaram-se, começaram a ficar inquietas, falando
todas ao mesmo tempo. Comecei a assustar-me. Não percebia o que estava a
acontecer, mas sabia que aquilo não era normal. Passados longos minutos
apareceu o maquinista, dizendo que não podíamos avançar, porque caíra um poste
de eletricidade sobre os carris, alguns quilómetros mais à frente. Também não
podíamos retroceder porque a última estação há muito que ficara para trás.
Teríamos de permanecer ali até que retirassem o poste e ninguém sabia quanto
tempo isso ia levar.
–
E ficaram lá muito tempo?
–
A noite toda.
–
Oh! E tu passaste os anos ali, no meio do nada?
–
É verdade. Só conseguia pensar na minha madrinha, no jantar que me queria
oferecer e no teatro a que iríamos em seguida. Era a primeira vez que eu ia ao
teatro e, em vez disso, estava ali sentada num comboio.
–
Deves ter ficado muito triste. – Vitor olhou para a janela, observando a chuva
e avaliando se a sua tristeza da avó seria maior do que a sua.
–
A princípio fiquei. Tão triste que um rapaz que viajava na mesma carruagem veio
ter comigo para me tentar animar, pensando que eu estava com medo.
–
E não estavas?
–
Um pouquinho, mas não era por isso que estava triste. Contei-lhe o que se
passava. O rapaz disse: «Lamento!», afastou-se e eu fiquei ali a olhar a
escuridão. Depois, vi que algumas pessoas acendiam uma fogueira e estendiam ao
pé uma manta grande, daquelas dos piqueniques, sabes?
Vitor
confirmou com a cabeça.
– Sobre
a manta cada pessoa colocava uma coisa. Eu não percebia o que era. Fiquei
curiosa, peguei no cesto e fui até lá. Todas as pessoas tinham um cesto, um
saco ou um cabaz e de dentro dele tiravam fruta, bolo, presunto, queijo,
chouriço. Um a um, todos iam depositando alguma coisa. Eu escolhi a mais bela
maçã que encontrei no cesto e coloquei-a na manta. Quando já todos haviam
contribuído, juntámo-nos em redor da fogueira e o rapaz, que falara comigo no
comboio, começou a tocar acordeão, acompanhado pelas vozes que entoavam a
canção de parabéns. Tudo aquilo era para mim. Em poucos minutos, ele preparara
a minha festa de anos, a melhor de toda a minha vida.
Vitor
e a avó olharam pela janela. A chuva parara e o sol fazia força para romper as
nuvens.
–
Acho que vais ter a tua festa de anos.
Vitor
levantou-se e agarrou-se ao pescoço da avó. Como era bom tê-la ali.
–
Nunca mais viste aquele rapaz?
–
Vi. É o teu avô.
Quita
Miguel