sexta-feira, 25 de julho de 2014


GEOMETRIA DA VIDA


 O sol descia sobre a cidade. Alberto sentara-se junto ao rio e deixara que os olhos se perdessem no horizonte.

O mergulho do sol marcava a interrupção da luz, que ressurgiria no dia seguinte com todo o vigor, mas também com toda a leveza, assinalando uma ininterrupta viagem geométrica.

Quando o sol tocou com doçura o rio, Alberto levantou-se. A aprazível espera do entardecer estava prestes a terminar, dando lugar à noite. Uma noite quente de verão, que uma suave brisa tornava menos sufocante. Tal experiência induzia-lhe um sentimento de mistério e de vibração, que se traduzia na sensação de estar mais vivo.

Olhou em volta como se procurasse alguém. Na varanda, viu o irmão, que fumava um cigarro, de costas voltadas. Jeans e camisa preta, cabelos ao vento, brilhando sob a luz do entardecer, a mão pousada na anca num gesto jocoso e o pé apoiado na floreira vazia. Como eram diferentes. Porfírio dominava o mundo com aquele jeito alegre de ser. Ele deixava-se dominar pelo mundo com o seu jeito tímido de ser.

Deu-se conta que pouco sabia dele. Talvez, como irmão mais velho, devesse esforçar-se mais, mas sente-se sempre demasiado cansado ou demasiado receoso para manter um diálogo. Todos sabemos que o mundo é cruel, então porquê dar-lhe armas? O melhor é guardarmo-nos para nós mesmos.

Passou a mão pelos cabelos e ajeitou a camisa. Com lentidão guardou tintas e pincéis. Mais uma vez, se entretivera a admirar a natureza e abandonara a aguarela apenas começada.

No dia seguinte, voltaria a sentar-se à beira do rio e sabia já, que, mais uma vez, o seu olhar se perderia na geometria da vida.

Parou no bar, antes de entrar em casa, e recostou-se no banco para pensar durante alguns instantes. Um criado aproximou-se, estendendo-lhe a lista, que Alberto olhou com indiferença. O que queria mesmo era poder abandonar-se naquele banco. Encomendou, não por que tivesse fome, mas para afastar de si o par de olhos que se impacientava. Reparou num padre que o observava e, por uns instantes, olhou-o nos olhos, mas logo se sentiu pouco à vontade, apesar de, por norma, não subverter os princípios da igreja.

Fez uma pausa nos devaneios para saborear a tosta. Até que lhe estava a saber bem.

De repente, ouviu-se um reparo ríspido, vindo de uma mesa situada perto da parede mais distante. Não conseguiu compreender o que diziam, mas a confusão foi suficiente para silenciar com brusquidão toda a sala. Esta explosão trouxe-lhe à memória as suas duas últimas relações. Algures na trajetória da vida, a sua maneira de ver as coisas mudara. Ao recordar os últimos seis anos, estava certo de que a experiência valera a pena.

«Não nasceste para salvar o mundo, ou o teu irmão, ou seja quem for», pensou. «Nasceste para…». Não conseguiu terminar a frase.

Foi até ao jardim, ao lado do bar, e deixou-se ficar por ali, parado atrás do banco de cedro, voltado para o rio. Colocou uma mão sobre o estômago, na tentativa de desfazer o nó, mas este insistia em permanecer. Olhou para o relógio. O irmão já deveria ter saído, estava na hora de ir para casa.

Mal entrou, poisou as coisas e dirigiu-se para a varanda. Sentou-se numa das cadeiras de baloiço e observou a noite, que estendia o seu manto negro sobre a vila. Todo o lugar estava imerso em obscuridade, à exceção do bar e de uma pequena construção de madeira de carvalho onde haviam instalado o posto da polícia, e cujas persianas desconjuntadas deixavam filtrar faixas de luz.

«O que é que se passa? Porquê este nó no estômago?», perguntou-se.

Estava habituado a confrontar-me com gente adulta, aprendera a fingir e dissimular com alguma habilidade. O difícil era olhar para dentro e ter a coragem de ver a realidade sem lentes coloridas que a distorcessem.

Levantou-se para ir buscar um copo de água. Olhou para o relógio de parede, pensou melhor, preparou um café e voltou a sentar-se com um álbum de fotografias sobre os joelhos.

Naquele momento, era como se pertencesse a outro mundo. Não conseguia desviar do pensamento, os momentos que ele e Melina haviam passado juntos naquela sala, onde ela enfiava um lenço na boca, para que o cunhado não a ouvisse arfar mais ruidosamente, ou gemer.

Num gesto brusco fechou o álbum e levantou-se. Bastava de viver do passado, de reviver de modo contínuo a mesma cena. Ela partira, não era? Então que fizesse boa viagem.

Sabia o quanto precisava mudar e como era absurdo aquele medo antecipado de fazer ou não fazer alguma coisa. Mas sabia também, que sozinho não teria chegado a lado nenhum. Fora ela a incentivá-lo a pintar, quando ele não acreditava que fosse capaz e, hoje, não conseguiria viver sem o fazer.

Deu-se um prazo, assim teria todo o tempo para se organizar. Deu-se um mês. Um mês para dar um pinote no ramerrame, para rumar em direção ao que a sua alma pedia, mas que, até então, se recusara a escutar.

Vendeu tudo o que podia. Comprou o bilhete de avião e partiu, rumo àquela praia distante, onde o sol se punha sobre o mar.

Hoje é feliz. Acorda ao som do restolhar do mar, numa cabana de madeira. Aí, pinta e vende os quadros aos turistas, que querem levar uma recordação da praia paradisíaca que muitos visitam, mas onde só alguns vivem.

Quita Miguel

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