segunda-feira, 25 de agosto de 2014


ADEUS MAUSOLÉU

 A minha mãe odeia-me. Com o seu olhar duro faz-me notar, de modo incessante, que devo continuar a estudar para poder ser alguém no futuro, enquanto o meu pai se embrenha na leitura exaustiva do jornal. Queria deixá-los ali, abandonados na letargia quotidiana, aborrecidos que nem um peru.

– Não percebem que somos todos uns inúteis, que a vida também é inútil!? – apetece-me gritar, mas a voz cala-se, mais uma vez, dentro de mim, como sempre se cala.

Sei reconhecer os meus erros, aprendi com o meu pai. Mas como posso evitá-los, se gosto de tudo o que é irresponsável e frágil?

A verdade é que, do mesmo modo que podemos ter um encontro feliz que decida a nossa vida, também é possível cometer asneiras para sempre irreparáveis. Escolhe-se um determinado caminho e pronto. Perco-me nestes pensamentos, quando o vento começa a bater nos vidros e, por instinto, afundo ainda mais o olhar nos livros.

De repente, não sei se por ser a minha sina ou o princípio da minha loucura, sou chamado à realidade ou ao delírio pela casa que me fala. Ou será o vento, que grita através dela? «Cobarde! Cobarde! Cobarde!» Olhando em redor, parece-me que aquele lugar não passa de janelas obstruídas, passagens veladas e paredes sujas. Observo-o de modo perverso, com olhos que, num impulso, se tornam ainda mais tristes. Tudo me parece difuso.

Um trovão ribomba enfurecido, como se o tempo me quisesse trazer à razão. E vem a chuva. Fico de pedra. No meio do temporal, não posso evitar uma recordação de quando era criança. A lembrança responsável pelo ódio que sinto por esta casa há mais de dez anos.

Naquele dia mais ou menos longínquo, o relógio marcava as dezanove horas quando as luzes se apagaram e fiquei sozinho, com o ribombar da tempestade em redor. Envolto no meu assombro, empurrava-me contra um canto, que, a despeito dos meus esforços, não me camuflava. Fora ela que me abandonara ali sozinho, dizendo que voltava logo, mas o logo demorou a chegar.

Nessa noite, dormi na varanda, apesar do frio, abraçado ao cão, já que me proibiu de dormir com ela. Odeia-me, esta velha, de cabelo branco despenteado, odeia-me. É como se a minha passagem por esta vida a incomodasse. No fim de contas, é uma desconhecida para mim, já que desde esse dia, ergui um muro em meu redor, mais espesso do que as paredes desta casa.

Olhando em volta, é como se reconhecesse o cenário da minha meninice. Pouco mudou. Refletido no espelho, eu sou agora a personificação da minha infância. A mesma impertinência disfarçada, a inflexibilidade camuflada, a postura cabisbaixa sentada à mesa. Observando-me, poder-se-á crer que jamais deixarei esta casa, nem esta vida.

No entanto, tudo não passa de ilusão, eu não sou mais uma criança de sete anos, e os livros que repousam na mesa trazem-me à realidade. Começo a folheá-los com atenção desatenta, permitindo que me deslize sob os olhos informação que deveria saber e que não me interessa. Nunca fui amante de filosofia nem de história. Que me importa o passado?

Acho que nem mesmo o presente ou o futuro me interessam. Ambicionei fama, contudo alcancei apenas uma certa reputação de ridículo, por sorte limitada a esta casa. Faço questão de ignorar tudo. Hoje, sinto-me como um desses indivíduos que não precisa dos outros. Sou um monstro, um pobre diabo sem ideia do que é o amor. Por vezes, ingénuo, ainda me pergunto se ela não gostará, pelo menos, um pouco de mim, apesar de nunca lhe ter visto qualquer indício de amor.

Levanto a face, fixo-a e no coração faz-se um silêncio estanho. Também a casa está submersa nessa ausência de rumor, agora que a chuva parou e a trovoada se afasta. Só a brisa continua a mover as folhas da videira. A tarde, cinzenta e monótona, aborrece-me. A minha respiração é lenta e firme, mas esforçada.

Vou à casa de banho, afastando-me por um momento da sala que mais parece um mausoléu. Alongo-me, de modo exaustivo e gratuito, em pensamentos sobre o meu corpulento pai que, exausto, se abandona no sofá. Regresso apático ao antro daquela sala e sinto, de modo inesperado, um medo insensato perante o futuro. Estou pálido, quase à beira do desmaio.

«Podias fugir agora», diz-me uma voz interior. «O tempo urge. Não pertences a este mundo

Algo novo acorda nos meus olhos pálidos, indiferentes. A mente gira e volta a girar, não me deixando descansar. Então, viro-me e saio, já que me parece ser a única coisa a fazer. O meu coração quase para de bater, ao aperceber-se que a viagem irá durar para sempre.

O que eles pensarão da minha súbita partida é difícil imaginar. Não perco tempo a pensar nisso.

À medida que avanço, viro-me para olhar por cima do ombro e tudo se torna diáfano. Nunca mais voltarei.

Quita Miguel

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

FUTEBOL

Decidira ficar até ela regressar a casa. Imaginara que quisesse voltar a falar consigo. Afinal, fora apenas uma discussão boba.
A sogra é que não gostou:
– Vou ter de pôr água no feijão.
– Obrigado por pensar assim – respondeu, com ironia. A velha cozinhava pior que mal.
Logo num domingo, perdera as estribeiras. Agora, não havia futebol para ninguém. Ou talvez houvesse…
Ruthe regressara sorrindo. Porquê, ele não sabia, nem lhe importava.
«Está na hora do jogo», pensou.

Quita Miguel

Desafio em 77 palavras – frases de 2, 3 6 ou 7 palavras

segunda-feira, 18 de agosto de 2014


À FOGUEIRA

O crepitar da lenha e o cheiro a madeira queimada invadia-lhe a sala. Luísa levantou-se e com passo pesado dirigiu-se à janela. Na praça, as pessoas principiavam a reunir-se. Daí a pouco, seria a vez do aroma a febras e chouriço assado se apoderar do perímetro, em conjunto com o rumor de quem festeja.

Suspirando, fechou a janela. Era naquela época, que se arrependia de ter comprado a casa bem no centro da vila, ali mesmo, na praça do pelourinho. As festas comemoravam a tradição de uma origem perdida nos anos, a vontade de se permanecer de pé, apesar de muitos fugirem em direção à cidade.

Para Luísa, esta era uma época triste, uma ocasião para abrir uma ferida antiga, ainda não sarada apesar dos anos já passados.

A cada celebração dizia: «Da próxima vez saio. No próximo ano, vou festejar com os outros.» Mas, mais um ano se passava, e a intenção era remetida para o seguinte.

Porque é que não conseguia enfrentar a vida com alegria? Porque evitava o convívio de pessoas felizes? Ela, que em tempos fora o espelho onde se refletia a felicidade. Quantos anos haviam já passado desde que, com um sorriso no rosto, saltara a última fogueira? Nove? Não, dez. Sim, era isso. Fora há dez anos que António sumira, deixando apenas as palavras que ela relia na folha amassada: «Perdoa-me se conseguires. Não posso mais ficar. Adeus.»

Soubera depois que fora para a Austrália e lá fizera fortuna. Ela ficara para trás, esquecida, e o que começara com juras de amor eterno, havia terminado com um frio «Adeus!» escrito num papel. Um dia, havia de conseguir libertar-se daquelas palavras, fecharia o ciclo e estaria de novo pronta para apreciar a vida. Um dia, aquela dor iria ausentar-se. Mas, por enquanto, Luísa permanecia ali, imóvel, olhando aquele pedaço de amargura.


A fogueira quebrava a escuridão em redor. As chamas ondulantes elevavam-se em direção ao céu. Sem pressa, arrastando o pé direito, Tio Zeferino foi-se aproximando. Quem era aquela pessoa que via ali sentada perto da fogueira? A silhueta recordava-lhe alguém. Mas quem? Rebuscou bem no fundo da memória e teve de recuar alguns anos até conseguir dar um nome à figura.

– Mas tu não és o António? – perguntou.

O homem limitou-se a abrir um leve sorriso. Fora reconhecido. Também era de esperar, num meio tão pequeno, as pessoas não esquecem.

– Pois, bons olhos te vejam, rapaz. Pensei que nunca mais te púnhamos a vista em cima. Nem prò funeral do teu pai, tu vieste.

Começavam as críticas. Também isso era de esperar. Ali, todo o mundo se metia na vida de todo o mundo e, pior do que isso, achava que esse era um direito adquirido. Fora essa, uma das muitas razões que o empurrara para longe, para um lugar onde ninguém quisesse saber o que fazia e porque o fazia.

Também desta vez, nada disse, limitando-se a sorrir. Não queria ser desagradável, se bem que começasse a duvidar ter feito bem, voltar ao fim de dez anos. Olhava em redor e não se enquadrava. Não pertencia àquele lugar, não se integrava.

Tio Zeferino foi puxando conversa, procurando saber o que fizera António tão longe, numa terra que nem falava a mesma língua.

– A Austrália é um mundo – acabou por dizer António, quando percebeu que Tio Zeferino não iria desistir. – Dei-me bem por lá. Aquela é uma terra que reconhece quem trabalha.

– Então e agora vieste pra ficar?

– Não sei – limitou-se a responder.

– Como é que um homem vem lá dos escafundós do mundo e não sabe ao que vem? Afinal, porque é que voltaste?

– Em busca de perdão, eu acho…

António deixou que o olhar se perdesse no bailado incessante das labaredas e não disse mais uma palavra.
 

A música entrava abrupta e autoritária no quarto de Luísa. Uma música que convidava a dançar, mas que as pernas teimavam em ignorar. Porque comprara aquela casa? Porque não escolhera um lugar isolado, onde conseguisse ficar em paz com a tristeza, onde os outros não se pudessem impor no seu mundo?

Foi de novo até à janela e olhou para a praça. Um vaivém de gente animava o local. A barraca das rifas era a mais concorrida, todos tentando a sorte. As crianças corriam animadas, procurando, a cada volta, conseguir um lugar no minúsculo carrossel. Luísa lembrou-se de quando tinha aquela idade. Nesse tempo jogavam à malha, saltavam à corda ou brincavam à linda falua. Teve vontade de ser de novo criança, de acreditar que a vida seria uma eterna diversão.

Olhou para as mãos e deu-se conta de que continua a segurar o papel. Voltou a contemplar as crianças e sentiu pena de si. Como se permitia sofrer daquela forma? Como podia continuar a viver no passado?

Por uma última vez, examinou o papel, vestiu o casaco e saiu decidida, pronta para o queimar na fogueira e assim encerrar um capítulo da sua vida. Depois, estaria pronta para a festa.

Quita Miguel

 

segunda-feira, 11 de agosto de 2014


Ingenuidade

«A tacanhez de Osório Projecto», o musical estreado ontem, monopolizou os títulos dos jornais.
Havia quem mostrasse, de modo subliminar, que tamanha mesquinhez se manifestava, com frequência, em outras faces. Ninguém avançava nomes, mas todos os murmuravam no recesso do lar, entre muros.
Como a palavra incomoda, houve quem se sentisse mártir, e sem medir consequências, perdesse a compostura e montasse outro espetáculo, sem música, mas com palavrão.
Ingénuo, vestira a carapuça, tornando-se novo alvo de chacota.

Quita Miguel

Desafio em 77 palavras:  tacanhez de Osório Proj (com M)

quarta-feira, 6 de agosto de 2014


EM CONSTRUÇÃO

 
Sou um templo em construção, de alicerces profundos, enraizados em princípios que me sustentam através dos pilares erguidos em busca do caminho. Sou um ser que se fabrica.

A arquitetura tem-se transformado ao longo da vida, acomodando-se a cada estádio de evolução para suportar as diversas mudanças que o crescimento comporta.

Já tive paredes de betão, dando morada a incertezas e inseguranças. Camuflei-as com a folhagem, para ocultar o meu âmago, por simples timidez.

Tive paredes de vidro, mas fosco, para preservar o interior. Eram belas, brilhantes, permitindo abraçar a vastidão do mundo. Porém, um dia estilhaçaram-se sem pré-aviso, assim, bem de repente, como aquela chuva tropical que chega e logo passa.

Então, ergui paredes de tijolo, mas senti-me sufocar por elas. Recorri ao ar condicionado, contudo, nem assim consegui respirar melhor.

Um dia, por pura iluminação, decidi destruir as barreiras e derrubei as paredes, deixando os pilares à vista, expostos a todas as críticas e censuras. Tornei-me uma morada indefinida, sem entradas, nem saídas. Um vazio que se esvaía no ar.

Depois ergui muros de terra que pouco duraram. Uma daquelas torrentes que por vezes nos arrasa, veio sem se anunciar e deixou de novo os pilares desnudados, esventrando o que de mais íntimo escondiam.

Alturas houve em que o chão tremeu. Nesse momento, os alicerces pareceram frágeis, quebradiços, de construção delicada. No entanto, logo se recompuseram suportados por uma estrutura, que escondia em si toda a força do ser.

Ao longo deste percurso, o templo foi visitado inúmeras vezes.

Houve aqueles que chegaram, se instalaram e ali permanecerem esquecidos do tempo, embalados pela suave música que animava os corredores, pelo perfume que envolvia os quartos, pela luminosidade que brilhava em cada canto.

Outras visitas foram breves, mas não menos agradáveis. Essas, poucas marcas deixaram e algumas foram mesmo esquecidas.

As que permaneceram mais tempo na memória foram as que me desestruturaram, esburacando o chão, riscando as paredes, escancarando as portas. Foram duras as fases de reconstrução, mas necessárias, porque de cada uma saí mais forte, mais consciente, mais tolerante e mais serena.

Durante algum tempo, tentei alargar o meu espaço, construi anexos, elevei andares, mas estes revelaram-se apêndices sem sentido e virei-me de novo para o centro, o ponto onde tudo se inicia, onde a energia se forma para nutrir as diversas divisões.

Hoje, as minhas paredes não passam de tapumes frágeis, mas plácidos, tranquilizados pelo maior conhecimento do ser, pela certeza de um caminho eterno, pela convicção da inexistência de fim. Têm janelas de confiança, que abrem as portadas a cada amanhecer para deixar os raios de sol brilharem na essência do templo.

Não ambiciono mais ser aquele palácio de dois andares, paredes fortes, portas de aço. Gosto de ser a simples cabana colorida, que admira o mar a acariciar a areia e se deixa afagar pela brisa fresca, que sopra a cada entardecer.

Às vezes, vem uma leve chuva que me retira o pó e me faz brilhar com nova intensidade. Então, agradeço.

Continuo em construção, mas é uma construção interior feita de pequenos detalhes, que me decoram e embelezam o ser.

Quita Miguel