ADEUS
MAUSOLÉU
–
Não percebem que somos todos uns inúteis, que a vida também é inútil!? –
apetece-me gritar, mas a voz cala-se, mais uma vez, dentro de mim, como sempre
se cala.
Sei
reconhecer os meus erros, aprendi com o meu pai. Mas como posso evitá-los, se
gosto de tudo o que é irresponsável e frágil?
A
verdade é que, do mesmo modo que podemos ter um encontro feliz que decida a
nossa vida, também é possível cometer asneiras para sempre irreparáveis. Escolhe-se
um determinado caminho e pronto. Perco-me nestes pensamentos, quando o vento começa
a bater nos vidros e, por instinto, afundo ainda mais o olhar nos livros.
De
repente, não sei se por ser a minha sina ou o princípio da minha loucura, sou chamado
à realidade ou ao delírio pela casa que me fala. Ou será o vento, que grita
através dela? «Cobarde! Cobarde! Cobarde!» Olhando em redor, parece-me que
aquele lugar não passa de janelas obstruídas, passagens veladas e paredes
sujas. Observo-o de modo perverso, com olhos que, num impulso, se tornam ainda
mais tristes. Tudo me parece difuso.
Um
trovão ribomba enfurecido, como se o tempo me quisesse trazer à razão. E vem a
chuva. Fico de pedra. No meio do temporal, não posso evitar uma recordação de
quando era criança. A lembrança responsável pelo ódio que sinto por esta casa
há mais de dez anos.
Naquele
dia mais ou menos longínquo, o relógio marcava as dezanove horas quando as
luzes se apagaram e fiquei sozinho, com o ribombar da tempestade em redor. Envolto
no meu assombro, empurrava-me contra um canto, que, a despeito dos meus
esforços, não me camuflava. Fora ela que me abandonara ali sozinho, dizendo que
voltava logo, mas o logo demorou a chegar.
Nessa
noite, dormi na varanda, apesar do frio, abraçado ao cão, já que me proibiu de
dormir com ela. Odeia-me, esta velha, de cabelo branco despenteado, odeia-me. É
como se a minha passagem por esta vida a incomodasse. No fim de contas, é uma
desconhecida para mim, já que desde esse dia, ergui um muro em meu redor, mais
espesso do que as paredes desta casa.
Olhando
em volta, é como se reconhecesse o cenário da minha meninice. Pouco mudou. Refletido
no espelho, eu sou agora a personificação da minha infância. A mesma impertinência
disfarçada, a inflexibilidade camuflada, a postura cabisbaixa sentada à mesa. Observando-me,
poder-se-á crer que jamais deixarei esta casa, nem esta vida.
No
entanto, tudo não passa de ilusão, eu não sou mais uma criança de sete anos, e
os livros que repousam na mesa trazem-me à realidade. Começo a folheá-los com
atenção desatenta, permitindo que me deslize sob os olhos informação que
deveria saber e que não me interessa. Nunca fui amante de filosofia nem de
história. Que me importa o passado?
Acho
que nem mesmo o presente ou o futuro me interessam. Ambicionei fama, contudo alcancei
apenas uma certa reputação de ridículo, por sorte limitada a esta casa. Faço
questão de ignorar tudo. Hoje, sinto-me como um desses indivíduos que não
precisa dos outros. Sou um monstro, um pobre diabo sem ideia do que é o amor. Por
vezes, ingénuo, ainda me pergunto se ela não gostará, pelo menos, um pouco de
mim, apesar de nunca lhe ter visto qualquer indício de amor.
Levanto
a face, fixo-a e no coração faz-se um silêncio estanho. Também a casa está
submersa nessa ausência de rumor, agora que a chuva parou e a trovoada se
afasta. Só a brisa continua a mover as folhas da videira. A tarde, cinzenta e
monótona, aborrece-me. A minha respiração é lenta e firme, mas esforçada.
Vou
à casa de banho, afastando-me por um momento da sala que mais parece um mausoléu.
Alongo-me, de modo exaustivo e gratuito, em pensamentos sobre o meu corpulento
pai que, exausto, se abandona no sofá. Regresso apático ao antro daquela sala e
sinto, de modo inesperado, um medo insensato perante o futuro. Estou pálido,
quase à beira do desmaio.
«Podias fugir agora»,
diz-me uma voz interior. «O tempo urge.
Não pertences a este mundo.»
Algo
novo acorda nos meus olhos pálidos, indiferentes. A mente gira e volta a girar,
não me deixando descansar. Então, viro-me e saio, já que me parece ser a única
coisa a fazer. O meu coração quase para de bater, ao aperceber-se que a viagem
irá durar para sempre.
O
que eles pensarão da minha súbita partida é difícil imaginar. Não perco tempo a
pensar nisso.
À
medida que avanço, viro-me para olhar por cima do ombro e tudo se torna diáfano.
Nunca mais voltarei.
Quita
Miguel
Muito bom!!!!!!!
ResponderEliminarParabéns pelo texto!!
Muito obrigada!
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