segunda-feira, 18 de agosto de 2014


À FOGUEIRA

O crepitar da lenha e o cheiro a madeira queimada invadia-lhe a sala. Luísa levantou-se e com passo pesado dirigiu-se à janela. Na praça, as pessoas principiavam a reunir-se. Daí a pouco, seria a vez do aroma a febras e chouriço assado se apoderar do perímetro, em conjunto com o rumor de quem festeja.

Suspirando, fechou a janela. Era naquela época, que se arrependia de ter comprado a casa bem no centro da vila, ali mesmo, na praça do pelourinho. As festas comemoravam a tradição de uma origem perdida nos anos, a vontade de se permanecer de pé, apesar de muitos fugirem em direção à cidade.

Para Luísa, esta era uma época triste, uma ocasião para abrir uma ferida antiga, ainda não sarada apesar dos anos já passados.

A cada celebração dizia: «Da próxima vez saio. No próximo ano, vou festejar com os outros.» Mas, mais um ano se passava, e a intenção era remetida para o seguinte.

Porque é que não conseguia enfrentar a vida com alegria? Porque evitava o convívio de pessoas felizes? Ela, que em tempos fora o espelho onde se refletia a felicidade. Quantos anos haviam já passado desde que, com um sorriso no rosto, saltara a última fogueira? Nove? Não, dez. Sim, era isso. Fora há dez anos que António sumira, deixando apenas as palavras que ela relia na folha amassada: «Perdoa-me se conseguires. Não posso mais ficar. Adeus.»

Soubera depois que fora para a Austrália e lá fizera fortuna. Ela ficara para trás, esquecida, e o que começara com juras de amor eterno, havia terminado com um frio «Adeus!» escrito num papel. Um dia, havia de conseguir libertar-se daquelas palavras, fecharia o ciclo e estaria de novo pronta para apreciar a vida. Um dia, aquela dor iria ausentar-se. Mas, por enquanto, Luísa permanecia ali, imóvel, olhando aquele pedaço de amargura.


A fogueira quebrava a escuridão em redor. As chamas ondulantes elevavam-se em direção ao céu. Sem pressa, arrastando o pé direito, Tio Zeferino foi-se aproximando. Quem era aquela pessoa que via ali sentada perto da fogueira? A silhueta recordava-lhe alguém. Mas quem? Rebuscou bem no fundo da memória e teve de recuar alguns anos até conseguir dar um nome à figura.

– Mas tu não és o António? – perguntou.

O homem limitou-se a abrir um leve sorriso. Fora reconhecido. Também era de esperar, num meio tão pequeno, as pessoas não esquecem.

– Pois, bons olhos te vejam, rapaz. Pensei que nunca mais te púnhamos a vista em cima. Nem prò funeral do teu pai, tu vieste.

Começavam as críticas. Também isso era de esperar. Ali, todo o mundo se metia na vida de todo o mundo e, pior do que isso, achava que esse era um direito adquirido. Fora essa, uma das muitas razões que o empurrara para longe, para um lugar onde ninguém quisesse saber o que fazia e porque o fazia.

Também desta vez, nada disse, limitando-se a sorrir. Não queria ser desagradável, se bem que começasse a duvidar ter feito bem, voltar ao fim de dez anos. Olhava em redor e não se enquadrava. Não pertencia àquele lugar, não se integrava.

Tio Zeferino foi puxando conversa, procurando saber o que fizera António tão longe, numa terra que nem falava a mesma língua.

– A Austrália é um mundo – acabou por dizer António, quando percebeu que Tio Zeferino não iria desistir. – Dei-me bem por lá. Aquela é uma terra que reconhece quem trabalha.

– Então e agora vieste pra ficar?

– Não sei – limitou-se a responder.

– Como é que um homem vem lá dos escafundós do mundo e não sabe ao que vem? Afinal, porque é que voltaste?

– Em busca de perdão, eu acho…

António deixou que o olhar se perdesse no bailado incessante das labaredas e não disse mais uma palavra.
 

A música entrava abrupta e autoritária no quarto de Luísa. Uma música que convidava a dançar, mas que as pernas teimavam em ignorar. Porque comprara aquela casa? Porque não escolhera um lugar isolado, onde conseguisse ficar em paz com a tristeza, onde os outros não se pudessem impor no seu mundo?

Foi de novo até à janela e olhou para a praça. Um vaivém de gente animava o local. A barraca das rifas era a mais concorrida, todos tentando a sorte. As crianças corriam animadas, procurando, a cada volta, conseguir um lugar no minúsculo carrossel. Luísa lembrou-se de quando tinha aquela idade. Nesse tempo jogavam à malha, saltavam à corda ou brincavam à linda falua. Teve vontade de ser de novo criança, de acreditar que a vida seria uma eterna diversão.

Olhou para as mãos e deu-se conta de que continua a segurar o papel. Voltou a contemplar as crianças e sentiu pena de si. Como se permitia sofrer daquela forma? Como podia continuar a viver no passado?

Por uma última vez, examinou o papel, vestiu o casaco e saiu decidida, pronta para o queimar na fogueira e assim encerrar um capítulo da sua vida. Depois, estaria pronta para a festa.

Quita Miguel

 

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