segunda-feira, 15 de setembro de 2014


OLHANDO O MAR

 
Manfredo limpou a cera dos ouvidos com o lápis e começou a concentrar-se na contagem. Primeiro as notas, depois a pilha de moedas que se encontrava na caixa registadora. Impressionado, assentou o número numa folha de papel e despejou o dinheiro para dentro do saco. Fora um bom dia.

– Ele vai adorar este peso, não vai, senhora Valentina? – perguntou, agitando o saco.

Valentina não lhe respondeu. Adormecera, com a cabeça ruiva pousada num monte de jornais velhos, acumulados em cima da mesa. Manfredo observou-a: o cabelo caído sobre a testa e os malares vermelhos do blush que, com nervosismo, espalhara até aos olhos.

A porta almofadada abriu-se com força, e o jovem dirigiu-se ao balcão, batendo no chão com as biqueiras metálicas das botas de cowboy. Manfredo, com um sorriso velado, estendeu-lhe o saco e um papel com o valor.

O rapaz piscou-lhe o olho e saiu, deixando a porta bater. Valentina acordou, levantando-se espavorida.

– Está na hora de ir andando. Já fechámos – esclareceu Manfredo com brandura.

A velhota colocou o chapéu, recolheu os pertences, atirando-os para dentro da bolsa e, com lentidão, dirigiu-se para o táxi, dando ao motorista o endereço da casa de repouso. O nome era apropriado, ali não se vivia, repousava-se, por isso ela escapava sempre que podia. Por vezes, limitava-se a vaguear por uma estação de comboios. Gostava de ver aquele vaivém de gente que tem um lugar para onde ir. Outras vezes, escolhia o café de Manfredo, refugiando-se do frio e do mau tempo.

 

Manfredo fechou as persianas, deu a volta à chave e saiu, tentando proteger-se da chuva que começava a cair com fúria.

Um arrepio percorreu-lhe os ombros, ao ouvir o som forte das ondas. Parecia que a água queria levar tudo consigo. Aquele mar traiçoeiro e sinistro, cujos remoinhos e correntes ceifam vidas todos os anos.

Pensou na família, ao passar em frente à fábrica. Uma estrutura grande, parecida com um celeiro, que abrigava rolos de tecido, mesas de corte, máquinas de costura enormes e gente desesperada. Gente sem perspetiva, apática, num mundo contemporâneo cego pelo sucesso económico.

Esta gente fascinava-o e confundia-o ao mesmo tempo. Era gente sincera, mas também intolerante. Viam nele o inimigo, que é necessário defrontar pelo simples facto de ter procurado outro destino.

As ruas começavam a ficar inundadas. Esperava que a senhora Valentina tivesse chegado ao lar antes daquele dilúvio.

Ao cabo de um quarto de hora, entrou em casa, escorrendo literalmente.

Despiu-se, vestiu o pijama e ligou a música. Depois, fechou os olhos e esqueceu-se de si próprio, absorvendo o universo através de cada nota musical. Imaginando-se a dirigir uma orquestra, ignorou que não passava de um mero empregado de bar. Então viveu, viveu um sonho com força de realidade. Um sonho engrandecido, do tamanho imensurável da sua criatividade.

Acendeu um Marlboro, olhando pela janela da sala. A chuva parara. Eram quase oito e meia. Passara uma hora, desde que a chuva começara a agredir a cidade, transformando as ruas em ribeiros de água agitada, que corriam em direção ao mar. Ao som da música, misturava-se o das sirenes dos bombeiros, que acorriam aos pedidos de ajuda dos menos afortunados. Sarjetas entupidas faziam as águas subir em poucos minutos, e, ano após ano, a cena repetia-se sem que daí se tirasse qualquer lição.

O sino tocava numa cadência fatigante, anunciando que algum pescador se havia perdido naquele mar feroz. Ao ouvir as ondas, Manfredo imaginou o pequeno barco a ser devorado pela água esfomeada de vida, vingando-se por a desventrarem a cada dia.

 

Também a senhora Valentina olhava o mar da janela da sala de casa de repouso, que ficava numa esquina da zona ribeirinha, uma parte da cidade onde, após o percurso paralelo de alguns quilómetros, a Alameda Santo António e a Av. Marginal se cruzavam. Era uma casa com ar condicionado, televisão a cores e horas a mais. Às vezes, deixavam-nos beber uma cerveja. Então, parecia que as horas ganhavam vida e os minutos aceleravam.

Valentina fora professora primária por mais de quarenta anos. Vivera sempre rodeada de crianças, agora trocara-as pelos velhos. Olhando em redor, rui à gargalhada até ficar com os olhos cheios de lágrimas. Deixara de conviver com a primeira infância, para conviver com a segunda.

Quando parou de rir, reparou em diversos pares de olhos fixos nela. Sem perder a compostura, serviu-se de mais chá e olhou para fora. Estava escuro como breu, mal dava para ver o mar.

Embrenhou-se nos seus pensamentos noturnos. Sentia-se com demasiada energia para estar ali, no meio de gente que se limitava a esperar a morte. Teve vontade de saltar para cima da mesa e gritar que acordassem, que reagissem à chegada da velhice, que não a deixassem vencer sem lhe dar luta. Mas não fez nada, porque uma onda de nervosismo e de embaraço a percorreu. Sentiu-se ridícula, tão ridícula que riu de si mesma.

– Chega por agora – disse a empregada, apagando a televisão que ninguém via. – Vá lá. Está na hora de dormir.

Um a um, todos se foram levantando e abandonando a sala. Só Valentina permaneceu ali, a olhar o escuro na esperança de vislumbrar um pouco de futuro.

Quita Miguel

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