LADRÃO DE SONHOS
( conto com que participei no concurso «Receitas Secretas».)
Os
habitantes de Tènanrev andavam com umas olheiras de meter medo ao mais corajoso
dos mortais. Há várias semanas, que não conseguiam sonhar ou, pelo menos, não se
recordavam de o fazer, e as suas almas ressentiam-se, mostrando-se famintas de
fantasias.
Não escalavam
mais os montes cobertos de oiro erguidos para o céu, nem se deitavam à sombra de
árvores de safiras, nem se banhavam em rios ladeados de rubis.
Reunido o
Conselho, Pantiei assumiu o comando, pondo fim ao burburinho que se instalara:
– Vamos lá
ver, têm de entender uma coisa: há que agir! São os sonhos que alimentam as
nossas almas. Sem eles, definhamos e acabamos por perecer.
– Quer
dizer que se não sonharmos morremos? – Atmia, o mais jovem dos conselheiros, ria
perante ideia tão absurda.
Como é que
o sonho podia ter tamanho poder? E alma? Até agora, ninguém provara a sua
existência e, muito menos, que precisava de mantimento.
– A noite
foi criada para que a alma pudesse nutrir-se, e isso é feito através dos sonhos
– esclareceu Pantiei com a convicção que a idade lhe dava.
– Pensei
que fosse por existir um movimento de rotação – argumentou Atmia mordaz.
– Tamanha
ignorância sobre o conhecimento ancestral da tua raça é mesmo de fazer dó.
Contudo, se quiseres aprender és bem-vindo, caso contrário podes sair, há, com
certeza, alguém disposto a ocupar o teu lugar.
– Não se
irrite, vá lá. Eu só… – O olhar duro de todos os conselheiros afogou-lhe a
palavra.
Atmia
ainda vacilou perante a discussão do caminho a seguir e quase se levantou para
argumentar que não caberia a miúdos de sete anos missão tão arriscada, mas
permaneceu sentado. Votou a favor, e foi tudo.
– Vamos
mais depressa! – Shaktiá andava sempre acelerada.
– Tá! – respondeu
Raiel, apurando o ouvido para detetar os ruídos no interior da fortaleza, ao
mesmo tempo que tentava focar o olhar. – Pantiei disse que há uma passagem
secreta por aqui, mas não vejo nada.
Continuaram
a gatinhar naquele túnel apertado até que um estrondo os sobressaltou.
– Devemos
estar a passar por baixo do terminal das vertijonaves,
a passagem deve ser por aqui. Procura qualquer coisa do lado direito, que eu
tendo do esquerdo. – Shaktiá percorria cada centímetro de parede com os dedos
frágeis, ao mesmo tempo que tentava conter o espirro, que ameaçava soltar-se a
qualquer instante.
Escondida
atrás duma saliência, Raiel encontrou uma pequena argola, enfiou o dedo e
puxou. O inesperado aconteceu: o chão abriu-se, engolindo os gémeos. Foi impossível
evitar o grito, enquanto escorregavam por uma descida que parecia não ter fim.
Um splash violento pôs termo à viagem. Aquilo não fora boa ideia. Agora, para além
de perdidos, estavam encharcados e, pior que tudo, a sobrevivência de Tènanrev dependia
deles.
– Não
resolvemos nada, ficando aqui à espera de um milagre. – Shaktiá despiu-se,
torceu a roupa e, com um arrepio, voltou a vesti-la.
Raiel
imitou-a.
Olharam em
volta em busca de direção. Tudo parecia igual. Foi então que suou algo parecido
com uma gargalhada longínqua.
Foram
andando, sem fazer barulho, até que a luz tremeluzente de uma fogueira lhes
revelou a presença do ladrão de sonhos. Era um vulto enorme, de cabelos longos,
sentado diante de um imenso ecrã preenchido com os sonhos aprisionados, que se
repetiam de modo incessante. Ele olhava-os hipnotizado e, de vez em quando,
ria.
Recordaram
as palavras de Pantiei: «Encastrado num tronco de uma árvore milenar, vão
encontrar o Livro da Essência Onírica. Aí está a receita que permitirá anular o
feitiço. Mas, atenção! Não podem retirar o livro, porque tudo se desmoronará.»
– Agora é
que estamos tramados. Olha para ali. – Raiel apontava para a clareira.
Bem no
centro, estava a árvore. Como passar pelo bandido?
– Só há
uma solução. Eu distraio-o e tu esgueiras-te até lá. – Mal Shaktiá acabara a
frase e já saltava a poucos metros do malfeitor. – Hei ladrãozito, estás a
divertir-te?
O monstro,
de pernas enferrujadas por falta de exercício, levou tempo a levantar-se. O
esforço de cada passo era tal que quase desistiu. Contudo, Shaktiá insistia na
provocação, na tentativa de o afastar da árvore milenar, e o grandalhão,
vaidoso do seu poder, não iria permitir que um ser minúsculo o desafiasse. Devagar,
foi-se arrastando na sua perseguição.
– Gostas
de festas? Anda que vamos dançar ou será que os quilitos a mais não te deixam
mexer? – espicaçava a miúda.
Assim que
o homenzarrão se afastou, Raiel aproximou-se do tronco onde repousava o Livro
da Essência Onírica. Só então, quando se preparava para o abrir, reparou que as
mãos estavam a tremer.
– Ó mamã,
ó guias, anjos e arcanjos, protegei-me nesta hora – disse, fechando os olhos e
colocando as mãos sobre a capa de madeira talhada. – Livro de todos os saberes
e de todas as verdades, revelai-me a secreta receita de libertação dos
sonhos.
Continuou,
proferindo as palavras que Pantiei lhe havia ensinado, colocando nelas toda a
convicção e fé.
Deixou que
os dedos escolhessem o momento de abrir o livro, e quando este se descerrou,
revelou-se um folclore de cores e cheiros.
Imagens
ganhavam vida, desprendiam-se do interior do livro e dançavam diante dos olhos
de Raiel. Fascinado, o rapaz fixava cada detalhe da receita que de
materializava na sua frente. Quando tudo terminou, o livro fechou-se e como que
por magia o jovem despertou bem no centro da cidade, onde todos aguardavam por
algo que os libertasse daquele marasmo cruel.
– É isto
aqui? – perguntou Atmia, com a boca seca e com dificuldade em articular as
palavras.
Para se
redimir, oferecera-se para recolher um dos ingredientes, mas não pensara que
isso o levasse tão longe.
Recebendo
as sementes da rosa-do-deserto, Raiel aproximou-se do caldeirão onde o leite de
amêndoas doces fervia, sob as chamas intensas da fogueira.
Quando
Pantiei se aproximou, Raiel perguntou-lhe:
– Acha que
esta poção também libertará a minha irmã?
– É claro
que sim, mas teremos de a encontrar para que ela a possa beber.
O rapaz
procurou afastar da mente as imagens do ladrão perseguindo Shaktiá. Se a queria
ajudar, era necessário que se concentrasse na receita.
Recontou as
sementes. Teriam de ser 77 de cada espécie. Em seguida, confirmou que no seu
bolso permanecia o ingrediente secreto. Então, respirou fundo e deu início à invocação:
– Distenksyon,
pai de todos nós, invocamos o teu nome para que nos auxilies na libertação dos
nossos sonhos. Entregamos-te as sementes de Drosera para que a generosidade
sempre habite o nosso coração, as sementes de Lophophora para que a temperança
nos guie, as sementes de pachycau para que a ética nunca nos abandone e as
sementes de lótus para que o amor seja o nosso alicerce.
Em seguida,
Raiel pegou um punhado de incenso e atirou-o para a fogueira, fazendo com que o
ambiente se perfumasse, e, aproveitando a distração de todos, retirou do bolso
a pequena flor e murmurou:
–
Distenksyon, ofereço-to a flor da árvore dos saberes, para que nos concedas a
magia da libertação.
Quando a
flor foi adicionada ao cozinhado, produziu-se uma explosão que a todos deixou
sem voz. Porém, bastaram apenas alguns segundos para que um rumor se fizesse
ouvir, quando um duende surgiu do interior do caldeirão e declarou:
– Tendes
perante vós a bebida mágica que vos tornará imunes ao roubo de sonhos. Cada um
deverá tomar uma colher de sopa, mas terá de o fazer durante a próxima hora.
Depois, a poção perderá o seu efeito.
O atropelo
foi tão grande quanto o anseio por ter os sonhos de volta.
Pantiei
aproximou-se de Raiel, que sobressaltado observava o assalto ao caldeirão, e
entregou-lhe um pequeno frasco, dizendo:
– Bebe a
tua parte e vai em busca da tua irmã. Recorda-te de que tens apenas três
quartos de hora.
O facto de
serem gémeos, deveria facilitar as coisas, pensou Raiel. Se conseguisse estar
tranquilo poderia sentir a irmã, o problema é que era-lhe impossível encontrar serenidade
com os minutos a escassearem.
Foi até à
unidade central da fortaleza, percorreu o túnel e aceitou o novo splash sem se demorar sequer a torcer a
roupa.
Correu,
esperando que o estivesse a fazer na direção certa. Haviam passado mais de dez
minutos quando ouviu:
– Ainda acha
que me apanha, senhor ladrãozito? Ups! – Shaktiá deixou que um pé se enfiasse
num ramo, acionando uma armadilha.
O ladrão,
ao vê-la pendurada de cabeça para baixo no tronco da árvore, parou para
recuperar o fôlego e soltar uma gargalhada.
Raiel
percebeu que o tempo disponível se reduzira, porque agora ele teria de salvar a
irmã antes que o monstro se aproximasse. Foi gerindo a corrida, procurando
evitar qualquer ruído, consciente de que a surpresa jogaria a seu favor.
Do cimo da
árvore, Shaktiá viu o irmão aproximar-se e mudou de estratégia:
– Hei,
grandalhão! Apressa lá o passo para me tirares daqui. A vista é bonita, mas já
estou cansada de estar de cabeça para baixo.
Funcionara.
O monstro parava e observava-a com um sorriso na carranca. Ia deixá-la
sentir-se como uma jabuticaba durante mais alguns minutos.
Raiel
aproveitou para atar uma trepadeira entre duas árvores a um palmo do chão.
Depois começou a falar com a irmã como se o ladrão não existisse:
– A mãe mandou-me
vir trazer-te o antidoto para o feitiço – disse, mostrando-lhe o pequeno frasco
–, mas não sei se tu o mereces.
– Dá-mo!
Dá-mo! – implorou Shaktiá.
– Não sei,
lembras-te daquela vez que me acusaste de copiar o trabalho? Isto para não
falar das inúmeras vezes que te escondes no momento de levantar a mesa. Acho
que não mereces. É melhor que fiques sem sonhar por um bom tempo.
– Não, por
favor. Eu prometo levantar a mesa e arrumar o quarto durante dez luas. Vá lá,
dá-me isso.
Acreditando
que as crianças se haviam esquecido dele, o monstro foi-se aproximando de
Raiel. Mais um passo e agarro-o, pensava. Só que esse passo a mais foi a sua
desgraça. Os pés embaralharam-se na trepadeira e a terra estremeceu quando o
seu corpanzil se estatelou no chão.
O rapaz
não perdeu tempo, correu em direção à irmã e atirou-lhe o frasco, que ela se
apressou a desenrolhar:
– Argh!
Isto sabe mesmo mal.
– Só tu
para te preocupares com o sabor – comentou o irmão, enquanto amarinhava pela
árvore e lhe soltava o pé. – Vamos depressa, temos de ir até à árvore milenar.
Só ela nos pode fazer regressar.
Quando
chegaram á clareira, viram os sonhos a desaparecer do imenso ecrã, até este
ficar completamente branco. A poção funcionara.
– Anda! –
Raiel puxou a irmã pela mão e conduziu-a ao Livro da Essência Onírica.
– E agora?
– Não sei
– confessou o miúdo.
– Não te
armes em parvo. Já prometi que arrumo tudo.
Um grito
de raiva rasgara o ar. O ladrão conseguira levantar-se e, verificando que a
presa desaparecera, demonstrava toda a fúria.
Os gémeos
precisavam agir depressa ou acabariam entre as suas garras.
Raiel
decidiu deixar que a intuição o guiasse. Colocou uma mão sobre o chakra
cardíaco e outra sobre o livro e permitiu que as palavras brotassem:
– Pelo poder
que deténs, te peço que nos devolvas ao povo de Tènanrev.
Passos
pesados ressoavam, revelando que o monstro se encontrava cada vez mais próximo.
Raiel procurava ouvir o seu coração, mas o medo dificultava a busca da palavra
certa. Naquele momento, um berro dilacerou-lhe os ouvidos. O urro desesperado
do ladrão, ao ver que os sonhos haviam desaparecido, fez o chão tremer e, por
isso, ou porque o espírito da árvore ancestral se compadeceu deles, os miúdos
foram sugados, aterrando de forma atrapalhada aos pés de Pantiel, o único que
os aguardava acordado.
Quita
Miguel
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