quinta-feira, 23 de outubro de 2014


LADRÃO DE SONHOS


( conto com que participei no concurso «Receitas Secretas».)

Os habitantes de Tènanrev andavam com umas olheiras de meter medo ao mais corajoso dos mortais. Há várias semanas, que não conseguiam sonhar ou, pelo menos, não se recordavam de o fazer, e as suas almas ressentiam-se, mostrando-se famintas de fantasias.

Não escalavam mais os montes cobertos de oiro erguidos para o céu, nem se deitavam à sombra de árvores de safiras, nem se banhavam em rios ladeados de rubis.

Reunido o Conselho, Pantiei assumiu o comando, pondo fim ao burburinho que se instalara:

– Vamos lá ver, têm de entender uma coisa: há que agir! São os sonhos que alimentam as nossas almas. Sem eles, definhamos e acabamos por perecer.

– Quer dizer que se não sonharmos morremos? – Atmia, o mais jovem dos conselheiros, ria perante ideia tão absurda.

Como é que o sonho podia ter tamanho poder? E alma? Até agora, ninguém provara a sua existência e, muito menos, que precisava de mantimento.

– A noite foi criada para que a alma pudesse nutrir-se, e isso é feito através dos sonhos – esclareceu Pantiei com a convicção que a idade lhe dava.

– Pensei que fosse por existir um movimento de rotação – argumentou Atmia mordaz.

– Tamanha ignorância sobre o conhecimento ancestral da tua raça é mesmo de fazer dó. Contudo, se quiseres aprender és bem-vindo, caso contrário podes sair, há, com certeza, alguém disposto a ocupar o teu lugar.

– Não se irrite, vá lá. Eu só… – O olhar duro de todos os conselheiros afogou-lhe a palavra.

Atmia ainda vacilou perante a discussão do caminho a seguir e quase se levantou para argumentar que não caberia a miúdos de sete anos missão tão arriscada, mas permaneceu sentado. Votou a favor, e foi tudo.

 

– Vamos mais depressa! – Shaktiá andava sempre acelerada.

– Tá! – respondeu Raiel, apurando o ouvido para detetar os ruídos no interior da fortaleza, ao mesmo tempo que tentava focar o olhar. – Pantiei disse que há uma passagem secreta por aqui, mas não vejo nada.

Continuaram a gatinhar naquele túnel apertado até que um estrondo os sobressaltou.

– Devemos estar a passar por baixo do terminal das vertijonaves, a passagem deve ser por aqui. Procura qualquer coisa do lado direito, que eu tendo do esquerdo. – Shaktiá percorria cada centímetro de parede com os dedos frágeis, ao mesmo tempo que tentava conter o espirro, que ameaçava soltar-se a qualquer instante.

Escondida atrás duma saliência, Raiel encontrou uma pequena argola, enfiou o dedo e puxou. O inesperado aconteceu: o chão abriu-se, engolindo os gémeos. Foi impossível evitar o grito, enquanto escorregavam por uma descida que parecia não ter fim.

Um splash violento pôs termo à viagem.  Aquilo não fora boa ideia. Agora, para além de perdidos, estavam encharcados e, pior que tudo, a sobrevivência de Tènanrev dependia deles.

– Não resolvemos nada, ficando aqui à espera de um milagre. – Shaktiá despiu-se, torceu a roupa e, com um arrepio, voltou a vesti-la.

Raiel imitou-a.

Olharam em volta em busca de direção. Tudo parecia igual. Foi então que suou algo parecido com uma gargalhada longínqua.

Foram andando, sem fazer barulho, até que a luz tremeluzente de uma fogueira lhes revelou a presença do ladrão de sonhos. Era um vulto enorme, de cabelos longos, sentado diante de um imenso ecrã preenchido com os sonhos aprisionados, que se repetiam de modo incessante. Ele olhava-os hipnotizado e, de vez em quando, ria.

Recordaram as palavras de Pantiei: «Encastrado num tronco de uma árvore milenar, vão encontrar o Livro da Essência Onírica. Aí está a receita que permitirá anular o feitiço. Mas, atenção! Não podem retirar o livro, porque tudo se desmoronará.»

– Agora é que estamos tramados. Olha para ali. – Raiel apontava para a clareira.

Bem no centro, estava a árvore. Como passar pelo bandido?

– Só há uma solução. Eu distraio-o e tu esgueiras-te até lá. – Mal Shaktiá acabara a frase e já saltava a poucos metros do malfeitor. – Hei ladrãozito, estás a divertir-te?

O monstro, de pernas enferrujadas por falta de exercício, levou tempo a levantar-se. O esforço de cada passo era tal que quase desistiu. Contudo, Shaktiá insistia na provocação, na tentativa de o afastar da árvore milenar, e o grandalhão, vaidoso do seu poder, não iria permitir que um ser minúsculo o desafiasse. Devagar, foi-se arrastando na sua perseguição.

– Gostas de festas? Anda que vamos dançar ou será que os quilitos a mais não te deixam mexer? – espicaçava a miúda.

Assim que o homenzarrão se afastou, Raiel aproximou-se do tronco onde repousava o Livro da Essência Onírica. Só então, quando se preparava para o abrir, reparou que as mãos estavam a tremer.

– Ó mamã, ó guias, anjos e arcanjos, protegei-me nesta hora – disse, fechando os olhos e colocando as mãos sobre a capa de madeira talhada. – Livro de todos os saberes e de todas as verdades, revelai-me a secreta receita de libertação dos sonhos. 

Continuou, proferindo as palavras que Pantiei lhe havia ensinado, colocando nelas toda a convicção e fé.

Deixou que os dedos escolhessem o momento de abrir o livro, e quando este se descerrou, revelou-se um folclore de cores e cheiros.

Imagens ganhavam vida, desprendiam-se do interior do livro e dançavam diante dos olhos de Raiel. Fascinado, o rapaz fixava cada detalhe da receita que de materializava na sua frente. Quando tudo terminou, o livro fechou-se e como que por magia o jovem despertou bem no centro da cidade, onde todos aguardavam por algo que os libertasse daquele marasmo cruel.

 

– É isto aqui? – perguntou Atmia, com a boca seca e com dificuldade em articular as palavras.

Para se redimir, oferecera-se para recolher um dos ingredientes, mas não pensara que isso o levasse tão longe.

Recebendo as sementes da rosa-do-deserto, Raiel aproximou-se do caldeirão onde o leite de amêndoas doces fervia, sob as chamas intensas da fogueira.

Quando Pantiei se aproximou, Raiel perguntou-lhe:

– Acha que esta poção também libertará a minha irmã?

– É claro que sim, mas teremos de a encontrar para que ela a possa beber.

O rapaz procurou afastar da mente as imagens do ladrão perseguindo Shaktiá. Se a queria ajudar, era necessário que se concentrasse na receita.

Recontou as sementes. Teriam de ser 77 de cada espécie. Em seguida, confirmou que no seu bolso permanecia o ingrediente secreto. Então, respirou fundo e deu início à invocação:

– Distenksyon, pai de todos nós, invocamos o teu nome para que nos auxilies na libertação dos nossos sonhos. Entregamos-te as sementes de Drosera para que a generosidade sempre habite o nosso coração, as sementes de Lophophora para que a temperança nos guie, as sementes de pachycau para que a ética nunca nos abandone e as sementes de lótus para que o amor seja o nosso alicerce.

Em seguida, Raiel pegou um punhado de incenso e atirou-o para a fogueira, fazendo com que o ambiente se perfumasse, e, aproveitando a distração de todos, retirou do bolso a pequena flor e murmurou:

– Distenksyon, ofereço-to a flor da árvore dos saberes, para que nos concedas a magia da libertação.

Quando a flor foi adicionada ao cozinhado, produziu-se uma explosão que a todos deixou sem voz. Porém, bastaram apenas alguns segundos para que um rumor se fizesse ouvir, quando um duende surgiu do interior do caldeirão e declarou:

– Tendes perante vós a bebida mágica que vos tornará imunes ao roubo de sonhos. Cada um deverá tomar uma colher de sopa, mas terá de o fazer durante a próxima hora. Depois, a poção perderá o seu efeito.

O atropelo foi tão grande quanto o anseio por ter os sonhos de volta.

Pantiei aproximou-se de Raiel, que sobressaltado observava o assalto ao caldeirão, e entregou-lhe um pequeno frasco, dizendo:

– Bebe a tua parte e vai em busca da tua irmã. Recorda-te de que tens apenas três quartos de hora.

O facto de serem gémeos, deveria facilitar as coisas, pensou Raiel. Se conseguisse estar tranquilo poderia sentir a irmã, o problema é que era-lhe impossível encontrar serenidade com os minutos a escassearem.

Foi até à unidade central da fortaleza, percorreu o túnel e aceitou o novo splash sem se demorar sequer a torcer a roupa.

Correu, esperando que o estivesse a fazer na direção certa. Haviam passado mais de dez minutos quando ouviu:

– Ainda acha que me apanha, senhor ladrãozito? Ups! – Shaktiá deixou que um pé se enfiasse num ramo, acionando uma armadilha.

O ladrão, ao vê-la pendurada de cabeça para baixo no tronco da árvore, parou para recuperar o fôlego e soltar uma gargalhada.

Raiel percebeu que o tempo disponível se reduzira, porque agora ele teria de salvar a irmã antes que o monstro se aproximasse. Foi gerindo a corrida, procurando evitar qualquer ruído, consciente de que a surpresa jogaria a seu favor.

Do cimo da árvore, Shaktiá viu o irmão aproximar-se e mudou de estratégia:

– Hei, grandalhão! Apressa lá o passo para me tirares daqui. A vista é bonita, mas já estou cansada de estar de cabeça para baixo.

Funcionara. O monstro parava e observava-a com um sorriso na carranca. Ia deixá-la sentir-se como uma jabuticaba durante mais alguns minutos.

Raiel aproveitou para atar uma trepadeira entre duas árvores a um palmo do chão. Depois começou a falar com a irmã como se o ladrão não existisse:

– A mãe mandou-me vir trazer-te o antidoto para o feitiço – disse, mostrando-lhe o pequeno frasco –, mas não sei se tu o mereces.

– Dá-mo! Dá-mo! – implorou Shaktiá.

– Não sei, lembras-te daquela vez que me acusaste de copiar o trabalho? Isto para não falar das inúmeras vezes que te escondes no momento de levantar a mesa. Acho que não mereces. É melhor que fiques sem sonhar por um bom tempo.

– Não, por favor. Eu prometo levantar a mesa e arrumar o quarto durante dez luas. Vá lá, dá-me isso.

Acreditando que as crianças se haviam esquecido dele, o monstro foi-se aproximando de Raiel. Mais um passo e agarro-o, pensava. Só que esse passo a mais foi a sua desgraça. Os pés embaralharam-se na trepadeira e a terra estremeceu quando o seu corpanzil se estatelou no chão.

O rapaz não perdeu tempo, correu em direção à irmã e atirou-lhe o frasco, que ela se apressou a desenrolhar:

– Argh! Isto sabe mesmo mal.

– Só tu para te preocupares com o sabor – comentou o irmão, enquanto amarinhava pela árvore e lhe soltava o pé. – Vamos depressa, temos de ir até à árvore milenar. Só ela nos pode fazer regressar.

Quando chegaram á clareira, viram os sonhos a desaparecer do imenso ecrã, até este ficar completamente branco. A poção funcionara.

– Anda! – Raiel puxou a irmã pela mão e conduziu-a ao Livro da Essência Onírica.

– E agora?

– Não sei – confessou o miúdo.

– Não te armes em parvo. Já prometi que arrumo tudo.

Um grito de raiva rasgara o ar. O ladrão conseguira levantar-se e, verificando que a presa desaparecera, demonstrava toda a fúria.

Os gémeos precisavam agir depressa ou acabariam entre as suas garras.

Raiel decidiu deixar que a intuição o guiasse. Colocou uma mão sobre o chakra cardíaco e outra sobre o livro e permitiu que as palavras brotassem:

– Pelo poder que deténs, te peço que nos devolvas ao povo de Tènanrev.

Passos pesados ressoavam, revelando que o monstro se encontrava cada vez mais próximo. Raiel procurava ouvir o seu coração, mas o medo dificultava a busca da palavra certa. Naquele momento, um berro dilacerou-lhe os ouvidos. O urro desesperado do ladrão, ao ver que os sonhos haviam desaparecido, fez o chão tremer e, por isso, ou porque o espírito da árvore ancestral se compadeceu deles, os miúdos foram sugados, aterrando de forma atrapalhada aos pés de Pantiel, o único que os aguardava acordado.

Quita Miguel

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