Tropeção
Acabou de atender a última cliente,
uma mulher bonita, com um sorriso bem-disposto. «É uma boa forma de terminar o
dia», pensou ao trancar a porta. Em seguida, colocou a mão na base da grade de
metal e preparava-se para a puxar em direção ao solo, quando sentiu o cano frio
de uma arma na nuca. A esta, seguiu-se uma pressão nas costas. Uma mão que o empurrava
contra o vidro, enquanto um bafo quente lhe ordenava ao ouvido: “Abra já a
porta!”
– O que disse? – perguntou Valter, fazendo
um movimento para se tentar libertar, mas logo desistindo ao ouvir a ameaça:
– Ena! Quer armar-se em herói. Se
fosse a si pensava melhor, com certeza, não lhe pagam para levar uma bala nos
cornos.
A ideia de permitir que aquele pulha
se apoderasse do que estava à sua guarda enojou-o. Contudo, o ladrão não
deixava de ter razão, refletiu. A farmácia não era sua, não havia o que
defender, que levasse o que quisesse. Depois veria como explicar ao patrão. Num
impulso, girou um pouco a cabeça, mas logo uma coronhada o obrigou a olhar em
frente.
– Vamos lá ver, então, se nos
entendemos. – A voz soou com uma tal frieza que o corpo de Valter gelou.
Pelo canto do olho, viu a manga
amarrotada de um casaco velho. Como demorasse a obedecer, o homem voltou a
empurrá-lo contra o vidro, sempre com a mesma brutalidade. Então, decidiu
deixar para depois as perguntas que lhe fervilhavam na cabeça e agir com
prudência. De modo atrapalhado, procurou a chave no bolso das calças, baixou-se
até que a mão chegasse perto do chão, inseriu a chave na fechadura, rodou-a e a
porta abriu-se.
Uma mão agarrou-o pela gola do
casaco, não permitindo que se afastasse, enquanto a outra continuava a segurar
a arma que voltava a roçar-lhe a nuca. Pensou na mulher e nos filhos, que o
aguardavam em casa, e temeu pela vida. Entristeceu ao reconhecer que, no fundo,
não precisavam dele. Não passava de um padrão de fracasso, que, há já algum
tempo, deixara de se respeitar a si mesmo. No entanto, tudo o que tivesse feito
ou deixado de fazer durante a vida perdia importância perante aquela ameaça.
Sentiu que o assaltante olhava em
volta, procurando algo. Seria uma pessoa conhecida que ali fosse com
frequência, ou alguém que entrava pela primeira vez, aproveitando a ocasião em
que a rua se encontrava deserta? Não reconhecia aquela voz.
A medo olhou o relógio. Já perdera o
comboio e isso, que tantas vezes o irritara, pareceu-lhe irrelevante. De
repente, um frio intenso envolveu-o, como quando algo de ruim está próximo e,
de novo, foi empurrado, desta vez, em direção da porta que conduzia à outra
sala. A escuridão caiu sobre si como uma onda enorme e impiedosa. Tateou em
busca do interruptor, mas antes que pudesse acender a luz, uma voz gritou-lhe
ao ouvido.
– O frigorífico?
Valter apontou para o canto do lado
direito.
– A morfina. Toda! – exigiu o homem,
fazendo-lhe sinal para que se apressasse.
Demorou algum tempo, até conseguir
acalmar-se o suficiente para avançar e abrir o pequeno frigorífico. Pegou num
saco com uma mão e com a outra, que não podia evitar que tremesse, retirou, com
fervor, os pequenos frascos. Entregou-os ao ladrão, esperando que isso pusesse
fim àquele episódio.
– Fique aqui até eu estar bem longe
ou mesmo até amanhã – retorquiu o gatuno, soltando uma gargalhada.
Sem conseguir emitir qualquer som, Valter
fez sinal com a cabeça de que entendera. Estava paralisado, não conseguiria dar
sequer um passo. Não eram só as mãos que lhe tremiam, mas também as pernas, os
braços. Todo ele tremia sem conseguir parar.
Deixou-se ficar imóvel no escuro, tentando
convencer-se de que estava a salvo.
De repente, ouviu um estrondo.
Assarapantado, tropeçando nas próprias pernas, Valter foi até à outra sala e
olhou para a rua. Estatelado, à saída da porta, estava o assaltante que
segurava ainda o saco com a morfina. Ao seu lado, resmungando, um cego que
procurava a bengala, apalpando o chão.
Quita Miguel
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