terça-feira, 30 de dezembro de 2014


Palratório Chato


Não há quem não afirme que Julinho Pitorra está mais para político, que para cómico. É que as graças arrancam apenas bocejos. Palratório chato! Os risos, esses ficam longe. Palco que Julinho pise é monotonia na certa. Mas insiste e, agora que o ano termina, ali está ele com a cara e a coragem, mas sem graça.

Sobe no palco, afina o tom e inicia o obsoleto repertório. Ninguém escuta.

Começa o ano sozinho, numa sala cheia.
 
Quita Miguel
Desafio nº 81 em 77 palavras sem d nem v.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014


PRIVAÇÃO DE PRIVACIDADE

 
O vermelho domina a paisagem. São as pétalas suaves e aveludadas das papoilas que cobrem a planície e ondulam com suavidade ao sabor da brisa.

Mais ao longe, uma árvore que o vento e o tempo despiram, impõe-se autoritária sobre o prado, onde as ovelhas saboreiam a erva verde, que a natureza com generosidade lhes oferece.

Junto ao mar, secam as redes, que mãos secas e endurecidas ainda há pouco puxavam das águas.

Um mar que agora se revolta sob a tempestade que se adivinha. A escuridão começa lentamente a fechar-se sobre a montanha, alongando a sombra da ermida abandonada, que protege a vinha dourada, que perfuma o campo.

Em breve será o cheiro a terra molhada. Um perfume que, por vezes, gostaria que pudesse ser feito de encomenda.

Uma dupla certeza me envolve: a de que pertenço a este lugar e a de que só aqui poderei ser feliz. Quanto a isso não pode haver engano.

Mas já a vida me chama para outras realidades, e parto com a lágrima e a saudade.

Dou um autógrafo antes de entrar no carro.

«Por quem me toma? Eu sou apenas um cidadão comum», tenho vontade de dizer, mas falta-me coragem, apesar de me incomodar, cada vez mais, ver o meu dia-a-dia interrompido por pessoas que não conheço, mas que me conhecem. Isso parece dar-lhes o direito de me interpelarem diversas vezes.

Não são poucas as ocasiões em que me apetece, apenas, voltar as costas ao circo em que a sua vida se tornou e mergulhar no anonimato. Como seria bom. Com um sentimento de melancolia vejo a paisagem ficar para trás, enquanto as pequenas estradas dão lugar às grandes vias, e o silêncio é sufocado pelo rumor da cidade. Conduzo sem pressas, numa tentativa ingénua de retardar a chegada. A alegria que senti no início da carreira, cada vez que me apelidavam de artista, torna-se agora um peso. Música, dança continuam a ser o seu mundo, mas o sorriso não mora mais na minha face.

Por fim, chego ao teatro, onde um homem, grande e de peito entufado, faz a segurança da entrada dos artistas. Subo ao palco e tudo se transforma. Aqui sou outra pessoa. Ao som da música que envolve a sala, o meu corpo dominava o tablado, esquecido de quem sou, entregando-me a cada nota.

No final da noite, regressa a realidade, e só reganho a paz quando, entrando em casa, dou as costas ao mundo que esqueço lá fora. Busco o silêncio numa tentativa de apagar a fama, que deixou de me acariciar, para me agredir.  

Deito-me na cama, puxou o lençol e sonho com a água a despencar da cachoeira, as aves exibindo os voos, a natureza prosseguindo no seu ritmo lento de ser. Lamento que a este hibernar se siga sempre um acordar. São milhares os que desejam estar no meu lugar, não imaginando a tristeza que me envolve a cada abrir da porta que me liga ao mundo.

Será que a felicidade suprema e permanente existe? Estou tentado a dizer que não, apesar de continuar à procura do caminho que possa conduzir-me a esse imaginado paraíso. Se algum dia desvendarei o mistério, não sei, é que ser-me-á impossível viver sem a música e, no entanto, é-me doloroso viver com ela.

Quita Miguel

sábado, 20 de dezembro de 2014


Salva in extremis

Não se falava noutra coisa senão nos enfeites de Natal. Organizado pelos mais velhos, coube aos mais pequenos decorar a árvore.

– Aiiiiiiiiii! – gritou Ricardo Nuno, ao mesmo tempo que dava um pulo para trás quase derrubando a avó, que tentava pôr ordem no recinto.

– Uiiiiiiiiiii! – gritou a aranha, vendo-se ameaçada pela vassoura e adivinhando passar a consoada ao relento.

Foi salva in extremis pelo avô, que ordenou:
– Que ninguém se atreva a tocar-lhe. Aranha é dinheiro certo!


Quita Miguel

Desafio nº 80 – o Natal da aranha

terça-feira, 16 de dezembro de 2014


IMPACIÊNCIA

"Todas as falhas humanas provêm da impaciência", já dizia o amigo Franz Kafka.

Queremos tudo para ontem, recusamo-nos a saborear a espera que nos prepara para o amanhã, e quando nos dizem que somos os argumentistas do nosso filme, continuamos a escrever de modo repetitivo, alimentando a personagem que não queremos ser.

Em vez de apostarmos na criatividade e arriscarmos num novo percurso, insistimos nos mesmos erros, aqueles bem banais que não se perdoam nem no primeiro ciclo de vida.

Continuamos a remoer no que não queremos, no que nos magoa, no que nos incomoda, dando-lhe desta forma energia para cresça e se multiplique. E, cada vez mais, o que temos é o que não queremos.

Pretendemos que o outro seja como nós, pense como nós, sinta como nós, aja como nós, esquecendo que todos somos um, mas que as peças que constroem o puzzle da unidade têm arestas diversas, e é essa individualidade que enriquece o ser divino que todos somos.

Quando a tristeza é o que nos alimenta, nada como uma boa gargalhada, mesmo sem vontade, um “amo-te muito” ao espelho e a consciência de que tudo é passageiro, tudo mesmo, não só os passageiros do autocarro.

Ao inverno frio, cinzento, chuvoso seguem-se os dias de céu azul, do sol a acarinhar-nos a pele, da natureza efusiva por mais um ciclo que se inicia, que terá fim, é certo, mas que é magnífico enquanto dura.

E não vale a pena levarmo-nos tão a sério, ninguém leva.

É bom sentirmo-nos bem, só porque sim, amar, só porque sim, sorrir, só porque sim. As coisas na vida não necessitam ter sempre um propósito, ou melhor, tudo na vida deveria ter um único propósito: a felicidade.

Então sejamos felizes com o que temos e aceitemos o maravilhoso, que apenas espera uma abertura para se mostrar.

Por mim, começo cada dia agradecendo e pedindo para que os meus anjos estejam comigo para me ajudar, guiar e proteger. E sei que eles estão, contribuindo para que cada dia seja pleno de iluminação.
Quita Miguel

sábado, 13 de dezembro de 2014

NESTE NATAL OFEREÇA COMPANHIA
 
 
 
 
FLORISTA



– Que jeitoso – disse ela de um modo carinhoso, olhando o arranjo monstruoso que ele transformara em algo tão harmonioso.

Ele sabia ser maravilhoso, e isso deixava-a deleitada.

Ela sabia-o engenhoso, sempre pronto a encontrar uma primorosa solução. Com as flores, revela-se de facto talentoso, deixando transparecer a característica afetuosa que nem sempre gostava de mostrar.

Amorosa aproximou-se e dengosa beijou-o de um modo gostoso.

Prazeroso, ele sorriu, retribuiu o beijo delicioso e raptou-a. As flores podiam esperar.

Quita Miguel

Desafio RS nº 20 – 14 palavras acabadas em -oso, -osa

sábado, 6 de dezembro de 2014


INDEPENDÊNCIA

 
Avaliando a vida que levava, admitiu que a primeira tentativa de independência se revelara dolorosa. Procurava reagir, mas não se conseguia perdoar pela intempestiva saída de casa.

Chegou-se ao fogão, mais para se aquecer do que para cozinhar qualquer coisa. Comer era uma obrigação que cumpria para sobreviver, isenta de qualquer prazer. À noite, na cama, procurava a presença que não estava e isso doía-lhe fundo.

Pensou nas prestações que ainda lhe faltava pagar pela televisão que quase nunca acendia, e isso afastou-lhe o sono. Que pena, não ter um botão para hibernar.

«Para com os lamentos, fecha os olhos e deixa-te ir», repetia, na tentativa de enganar a insónia.

Deveria existir um elixir do amor, que se pudesse tomar em doses pequenas, mas regulares. E mais uma coisa: um elixir contra a burrice e a intempestividade. À falta disso, levantou-se, enrolou um cigarro e foi sentar-se na varanda, envolto num cobertor. Mentalmente enumerou o que lhe fazia mais falta, o que perdera e o que nunca tivera.

Compreendeu que entrara naquela fase da vida em que não se pertence a lado nenhum, vive-se numa terra de ninguém, num meio mundo, numa meia verdade e num absoluto desgosto.

A comunicação reduz-se a um «bom dia», quando se entra no emprego, e a uma «boa tarde», quando se sai. E não está longe o dia em que, com indiferença se chega e parte, e isso transmite-nos o conhecimento do que é a solidão. Contudo, continua-se a mentir para o mundo, dizendo que se está: «Muito bem, obrigado», escondendo as lágrimas que escorrerem pelo rosto com facilidade. Os lenços acumulam-se espalhados pela casa, mas camuflamos-lhes a utilização, dizendo, que estamos a ficar um pouco constipados.

Terminou o segundo cigarro e com ira, reganhou o lugar na cama. Impotente, permitiu que a raiva crescesse dentro dele, procurando um culpado que não havia. Sabia porquê: preferia dar força à revolta, a sentir-se pusilânime, arrastando-se ao longo dos dias.

 

– Pois é… mais um dia – resmungou quando o despertador tocou, cedo demais para quem prolongara a noite.

A mão acariciou a almofada que ninguém usava, mas que ali permanecia, para lhe evidenciar o espaço vazio, enxotando a harmonia que não se permitia sentir. Fechou os olhos e sem se aperceber mergulhou num sono profundo, onde ouvia a voz dela cantando. Procurou-a sem cessar, seguindo uma voz que não tinha corpo. De repente, algo lhe agarrou as pernas. Esforçava-se por avançar, mas as trepadeiras amarinhavam, rodeavam-lhe já os joelhos, remetendo-o à imobilidade.

Ao longe viu-a surgir, envolta numa névoa, que se ia desvanecendo à medida que ela caminhava na sua direção. Pessoas começavam a aproximar-se, cumprimentando-a, felicitando-a, envolvendo-a, camuflando-a.

Um som estridente envolveu o ar e ele abriu os olhos sobressaltado, procurando-a e, mais uma vez, encontrando o lugar que ainda lhe pertencia, mas que ela não ocupava mais.

Atendeu o telemóvel.

– Mas onde raio é que andas? O buffet tem de ser serviço dentro de meia hora. Achas que dou conta do recado sozinho?

Saltou da cama, vestiu-se. Não havia tempo para tomar banho ou fazer a barba. Correu para o carro. Só lhe faltava perder também o emprego. Nesse caso, a desgraça seria completa.

– Até que enfim. Já fiz quase tudo. Isto de uns só receberem e os outros trabalharem….

– O que é que falta fazer? – perguntou, cortando a lamentação do colega.

Atirou-se aos ovos, mexendo-os com um pouco de leite e ervas do jeito de que ela gostava. Adorava cozinhar para ela e, um dia, sem perceber porquê, deixara de o fazer. Tudo lhe começara a parecer pesado, repetitivo, sem graça. Ela estranhara e ameaçara:

– Se um dia eu souber que andas metido com outra mulher!...

Ele cansou-se. Ansiou por liberdade, por solidão, por silêncio, por ausência de horários e de compromissos e saiu com um adeus.

Colocou os ovos na travessa e dirigiu-se para a sala de receção que começava a encher-se. Não fazia ideia do que se tratava. Nunca o preocupava a quem servia, apenas o que servia. Olhou em volta, certificando-se de que nada faltava. Então, uma voz sobressaiu do meio das restantes:

– Eu vou optar por uns ovos. Parecem do jeito de que eu gosto.

Virou-se e viu-a, sorrindo para alguém que não era ele e, nesse momento, percebeu que a perdera definitivamente.

Quita Miguel

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

NÃO, TALVEZ OU SEMPRE?


O grande negador reinava na terra do não, um lugar onde nada era permitido.
Os pequenos sonhadores, cansados da constante negação a tudo o que queriam fazer, atravessaram a fronteira, numa noite em que lua não brilhava, e entraram no país do talvez, uma nação enorme governada pela indecisão.
Também ali se sentiram perdidos e fugiram para um minúsculo país entalado entre as montanhas. Aí descobriram sorriso, alegria e harmonia. Foram quase felizes, num sempre muito pequeno.

Quita Miguel

Desafio nº 79 – quase felizes, num sempre muito pequeno.