INDEPENDÊNCIA
Avaliando a vida que levava, admitiu que a primeira
tentativa de independência se revelara dolorosa. Procurava reagir, mas não se
conseguia perdoar pela intempestiva saída de casa.
Chegou-se ao fogão, mais para se aquecer do que para cozinhar
qualquer coisa. Comer era uma obrigação que cumpria para sobreviver, isenta de
qualquer prazer. À noite, na cama, procurava a presença que não estava e isso
doía-lhe fundo.
Pensou nas prestações que ainda lhe faltava pagar pela
televisão que quase nunca acendia, e isso afastou-lhe o sono. Que pena, não ter
um botão para hibernar.
«Para com os lamentos, fecha os olhos e deixa-te ir», repetia,
na tentativa de enganar a insónia.
Deveria existir um elixir do amor, que se pudesse tomar
em doses pequenas, mas regulares. E mais uma coisa: um elixir contra a burrice
e a intempestividade. À falta disso, levantou-se, enrolou um cigarro e foi
sentar-se na varanda, envolto num cobertor. Mentalmente enumerou o que lhe fazia
mais falta, o que perdera e o que nunca tivera.
Compreendeu que entrara naquela fase da vida em que não
se pertence a lado nenhum, vive-se numa terra de ninguém, num meio mundo, numa
meia verdade e num absoluto desgosto.
A comunicação reduz-se a um «bom dia», quando se entra no
emprego, e a uma «boa tarde», quando se sai. E não está longe o dia em que, com
indiferença se chega e parte, e isso transmite-nos o conhecimento do que é a
solidão. Contudo, continua-se a mentir para o mundo, dizendo que se está:
«Muito bem, obrigado», escondendo as lágrimas que escorrerem pelo rosto com
facilidade. Os lenços acumulam-se espalhados pela casa, mas camuflamos-lhes a
utilização, dizendo, que estamos a ficar um pouco constipados.
Terminou o segundo cigarro e com ira, reganhou o lugar na
cama. Impotente, permitiu que a raiva crescesse dentro dele, procurando um
culpado que não havia. Sabia porquê: preferia dar força à revolta, a sentir-se
pusilânime, arrastando-se ao longo dos dias.
– Pois é… mais um dia – resmungou quando o despertador
tocou, cedo demais para quem prolongara a noite.
A mão acariciou a almofada que ninguém usava, mas que ali
permanecia, para lhe evidenciar o espaço vazio, enxotando a harmonia que não se
permitia sentir. Fechou os olhos e sem se aperceber mergulhou num sono profundo,
onde ouvia a voz dela cantando. Procurou-a sem cessar, seguindo uma voz que não
tinha corpo. De repente, algo lhe agarrou as pernas. Esforçava-se por avançar,
mas as trepadeiras amarinhavam, rodeavam-lhe já os joelhos, remetendo-o à
imobilidade.
Ao longe viu-a surgir, envolta numa névoa, que se ia
desvanecendo à medida que ela caminhava na sua direção. Pessoas começavam a
aproximar-se, cumprimentando-a, felicitando-a, envolvendo-a, camuflando-a.
Um som estridente envolveu o ar e ele abriu os olhos
sobressaltado, procurando-a e, mais uma vez, encontrando o lugar que ainda lhe
pertencia, mas que ela não ocupava mais.
Atendeu o telemóvel.
– Mas onde raio é que andas? O buffet tem de ser serviço dentro de meia hora. Achas que dou conta do
recado sozinho?
Saltou da cama, vestiu-se. Não havia tempo para tomar
banho ou fazer a barba. Correu para o carro. Só lhe faltava perder também o
emprego. Nesse caso, a desgraça seria completa.
– Até que enfim. Já fiz quase tudo. Isto de uns só
receberem e os outros trabalharem….
– O que é que falta fazer? – perguntou, cortando a
lamentação do colega.
Atirou-se aos ovos, mexendo-os com um pouco de leite e
ervas do jeito de que ela gostava. Adorava cozinhar para ela e, um dia, sem
perceber porquê, deixara de o fazer. Tudo lhe começara a parecer pesado,
repetitivo, sem graça. Ela estranhara e ameaçara:
– Se um dia eu souber que andas metido com outra mulher!...
Ele cansou-se. Ansiou por liberdade, por solidão, por
silêncio, por ausência de horários e de compromissos e saiu com um adeus.
Colocou os ovos na travessa e dirigiu-se para a sala de
receção que começava a encher-se. Não fazia ideia do que se tratava. Nunca o
preocupava a quem servia, apenas o que servia. Olhou em volta, certificando-se
de que nada faltava. Então, uma voz sobressaiu do meio das restantes:
– Eu vou optar por uns ovos. Parecem do jeito de que eu
gosto.
Virou-se e viu-a, sorrindo para alguém que não era ele e,
nesse momento, percebeu que a perdera definitivamente.
Quita Miguel