quinta-feira, 25 de dezembro de 2014


PRIVAÇÃO DE PRIVACIDADE

 
O vermelho domina a paisagem. São as pétalas suaves e aveludadas das papoilas que cobrem a planície e ondulam com suavidade ao sabor da brisa.

Mais ao longe, uma árvore que o vento e o tempo despiram, impõe-se autoritária sobre o prado, onde as ovelhas saboreiam a erva verde, que a natureza com generosidade lhes oferece.

Junto ao mar, secam as redes, que mãos secas e endurecidas ainda há pouco puxavam das águas.

Um mar que agora se revolta sob a tempestade que se adivinha. A escuridão começa lentamente a fechar-se sobre a montanha, alongando a sombra da ermida abandonada, que protege a vinha dourada, que perfuma o campo.

Em breve será o cheiro a terra molhada. Um perfume que, por vezes, gostaria que pudesse ser feito de encomenda.

Uma dupla certeza me envolve: a de que pertenço a este lugar e a de que só aqui poderei ser feliz. Quanto a isso não pode haver engano.

Mas já a vida me chama para outras realidades, e parto com a lágrima e a saudade.

Dou um autógrafo antes de entrar no carro.

«Por quem me toma? Eu sou apenas um cidadão comum», tenho vontade de dizer, mas falta-me coragem, apesar de me incomodar, cada vez mais, ver o meu dia-a-dia interrompido por pessoas que não conheço, mas que me conhecem. Isso parece dar-lhes o direito de me interpelarem diversas vezes.

Não são poucas as ocasiões em que me apetece, apenas, voltar as costas ao circo em que a sua vida se tornou e mergulhar no anonimato. Como seria bom. Com um sentimento de melancolia vejo a paisagem ficar para trás, enquanto as pequenas estradas dão lugar às grandes vias, e o silêncio é sufocado pelo rumor da cidade. Conduzo sem pressas, numa tentativa ingénua de retardar a chegada. A alegria que senti no início da carreira, cada vez que me apelidavam de artista, torna-se agora um peso. Música, dança continuam a ser o seu mundo, mas o sorriso não mora mais na minha face.

Por fim, chego ao teatro, onde um homem, grande e de peito entufado, faz a segurança da entrada dos artistas. Subo ao palco e tudo se transforma. Aqui sou outra pessoa. Ao som da música que envolve a sala, o meu corpo dominava o tablado, esquecido de quem sou, entregando-me a cada nota.

No final da noite, regressa a realidade, e só reganho a paz quando, entrando em casa, dou as costas ao mundo que esqueço lá fora. Busco o silêncio numa tentativa de apagar a fama, que deixou de me acariciar, para me agredir.  

Deito-me na cama, puxou o lençol e sonho com a água a despencar da cachoeira, as aves exibindo os voos, a natureza prosseguindo no seu ritmo lento de ser. Lamento que a este hibernar se siga sempre um acordar. São milhares os que desejam estar no meu lugar, não imaginando a tristeza que me envolve a cada abrir da porta que me liga ao mundo.

Será que a felicidade suprema e permanente existe? Estou tentado a dizer que não, apesar de continuar à procura do caminho que possa conduzir-me a esse imaginado paraíso. Se algum dia desvendarei o mistério, não sei, é que ser-me-á impossível viver sem a música e, no entanto, é-me doloroso viver com ela.

Quita Miguel

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