PRIVAÇÃO DE PRIVACIDADE
O vermelho domina a paisagem. São as pétalas suaves e
aveludadas das papoilas que cobrem a planície e ondulam com suavidade ao sabor
da brisa.
Mais ao longe, uma árvore que o vento e o tempo despiram,
impõe-se autoritária sobre o prado, onde as ovelhas saboreiam a erva verde, que
a natureza com generosidade lhes oferece.
Junto ao mar, secam as redes, que mãos secas e
endurecidas ainda há pouco puxavam das águas.
Um mar que agora se revolta sob a tempestade que se
adivinha. A escuridão começa lentamente a fechar-se sobre a montanha, alongando
a sombra da ermida abandonada, que protege a vinha dourada, que perfuma o
campo.
Em breve será o cheiro a terra molhada. Um perfume que,
por vezes, gostaria que pudesse ser feito de encomenda.
Uma dupla certeza me envolve: a de que pertenço a este
lugar e a de que só aqui poderei ser feliz. Quanto a isso não pode haver
engano.
Mas já a vida me chama para outras realidades, e parto
com a lágrima e a saudade.
Dou um autógrafo antes de entrar no carro.
«Por quem me toma? Eu sou apenas um cidadão comum»,
tenho vontade de dizer, mas falta-me coragem, apesar de me incomodar, cada vez
mais, ver o meu dia-a-dia interrompido por pessoas que não conheço, mas que me
conhecem. Isso parece dar-lhes o direito de me interpelarem diversas vezes.
Não são poucas as ocasiões em que me apetece, apenas,
voltar as costas ao circo em que a sua vida se tornou e mergulhar no anonimato.
Como seria bom. Com um sentimento de melancolia vejo a paisagem ficar para
trás, enquanto as pequenas estradas dão lugar às grandes vias, e o silêncio é
sufocado pelo rumor da cidade. Conduzo sem pressas, numa tentativa ingénua de
retardar a chegada. A alegria que senti no início da carreira, cada vez que me
apelidavam de artista, torna-se agora um peso. Música, dança continuam a ser o
seu mundo, mas o sorriso não mora mais na minha face.
Por fim, chego ao teatro, onde um homem, grande e de
peito entufado, faz a segurança da entrada dos artistas. Subo ao palco e tudo
se transforma. Aqui sou outra pessoa. Ao som da música que envolve a sala, o meu
corpo dominava o tablado, esquecido de quem sou, entregando-me a cada nota.
No final da noite, regressa a realidade, e só reganho a
paz quando, entrando em casa, dou as costas ao mundo que esqueço lá fora. Busco
o silêncio numa tentativa de apagar a fama, que deixou de me acariciar, para me
agredir.
Deito-me na cama, puxou o lençol e sonho com a água a
despencar da cachoeira, as aves exibindo os voos, a natureza prosseguindo no
seu ritmo lento de ser. Lamento que a este hibernar se siga sempre um acordar.
São milhares os que desejam estar no meu lugar, não imaginando a tristeza que
me envolve a cada abrir da porta que me liga ao mundo.
Será que a felicidade suprema e permanente existe? Estou
tentado a dizer que não, apesar de continuar à procura do caminho que possa
conduzir-me a esse imaginado paraíso. Se algum dia desvendarei o mistério, não
sei, é que ser-me-á impossível viver sem a música e, no entanto, é-me doloroso
viver com ela.
Quita Miguel
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