quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

CAMINHO ALTERNATIVO

Célia Maria, pela primeira vez naquela tarde, prestou atenção no filho. As mãos atabalhoadas, procurando agarrar três soldados, dois carros ...e um cavalo.
Poisou a faca e gastou algum tempo numa observação minuciosa. Via-se bem que era aparentado do velho Robira, sempre cioso de ter os pertences por perto. E aquela raiva contida…
Com o apoio do marido, afastara-se da família, na tentativa de fugir à sua influência, mas há coisas que se transmitem pelo sangue. 

Perdeu-se no silêncio das recordações do dia, em que chegara da escola mais cedo, esperando encontrar a casa deserta. Porém, deparara-se com um pai que não conhecia e que a surpreendeu de um modo inimaginável.
– Isso, em cima da mesa, é droga?
– É, está calada.
– Mas, o que é que estás a fazer com isso?
– Chiu!
Sempre tinham sido pobres, num universo onde era difícil acalentar a alma. Talvez por isso, ele tivesse procurado um caminho alternativo. Uma via que lhes tirava a fome, mas que também lhes extraía a dignidade.
Uma noite, em que os criminosos a quem o pai tentara passara a perna, o espancaram, bem na sua frente, Célia soube que teria de dizer basta. O pai, estendido no chão da cozinha, olhava-a como um cão ao dono, contudo ela soube ter a força necessária para lhe virar as costas.
– Aqui tens uma manta – dissera, atirando-lha.
Por muito tempo, Célia odiou a ambição do pai e o pérfido desejo de ter sempre mais. Passou pelos anos como uma mulher em guerra, sem ver nem ouvir ninguém. Mas, aquele que viria a ser o seu marido soubera reconhecer nela a natureza integra e ajudá-la a construir a estrada que a afastara em definitivo da família.
Contudo, a singular inconsciência do homem a quem um dia chamou pai parecia persegui-la nas coisas mais profundas da vida. As aparências continuavam a marcar presença, num mundo que ignora a gravidade de avaliar com base em julgamentos superficiais, evitando discutir a essência das coisas. Ao longo dos dias, desprezam-se as melhores coisas da vida: a paz, as horas dormidas no sofá, a água fresca pela manhã, o silêncio em que nos ouvimos.
Por vezes, Célia Maria lamenta que o pai não tenha morrido naquele dia fatídico, mas o velho sempre foi duro. Recuperara e tornara-se ainda mais determinado no caminho que iniciara por desespero e mantivera por avidez. Lamentava, em especial, que os irmãos se tivessem deixado arrastar para um meio onde a vida vale menos do que um copo de vinho.
Levantou-se e aproximou-se do filho.
– Vamos até ao jardim e depois vamos buscar os manos à escola – disse, retirando das mãos da criança os brinquedos.
Subiram pelo caminho estreito e sinuoso, para atalhar caminho. Era uma encosta ingreme, que lhes tirava o fôlego, mas que ela preferia à alternativa movimentada que eram as ruas do centro.
Sentou-se, observando o filho no parque infantil. Queria ser o primeiro em tudo e, se ela não estivesse ali, por certo seria capaz de arrancar outra criança do baloiço onde se quisesse sentar.
No extremo contrário do parque, um homem observava-a. Semicerrou os olhos numa tentativa de quebrar o efeito de contraluz. Um arrepio percorreu-lhe o corpo. Levantou-se, agarrou o filho por um braço e arrastou-o, ignorando os protestos da criança.
A face estava oculta, mas aquele porte não deixava dúvidas. O pai havia-a descoberto. Acelerou o passo até à escola.
– Boa tarde, dona Célia, hoje chegou cedo – disse o porteiro.
– Veio alguém à procura dos meus filhos? – perguntou, sem sequer cumprimentar o homem.
– Não senhora. Deveria?
– Não, não, não deveria. Nunca deixe os meus filhos sair com ninguém a não ser comigo ou com o meu marido, ouviu?
– Certo. A senhora, já avisou várias vezes. Pode estar descansada, que daqui eles não saem. Mas, passa-se alguma coisa? Há algum perigo?
– Não. Não se preocupe. Acho que são só coisas da cabeça de uma mãe assustada.
Lívida, foi sentar-se à sombra da árvore, enquanto aguardava pelo termo das aulas e o pequeno corria pelo recreio.
Haviam já passado dez anos, desde que Célia partira da sua cidade, sem uma palavra, virando as costas à vida que não conseguia aceitar. Após todo esse tempo, continua ainda em busca da paz que deixou para trás, numa época em que a ingenuidade lhe coloria a existência. Para a encontrar, precisa de se voltar na direção das coisas simples e abrir o coração ao amor que a nova família lhe oferece. Os filhos, a natureza, o marido, todos estão de braços abertos, aguardando que ela acredite que o seu coração está sarado, pronto para receber o fluido misterioso daquilo a que teimamos chamar amor. Se, ela ao menos conseguisse esquecer…


Quita Miguel

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