domingo, 22 de fevereiro de 2015


VIDA DE COSTAS VOLTADAS

 (Conto com que participei no concurso «Ei-los que partem»)

– Por Deus! Não sei o que faça contigo. Tudo pode mudar, só depende de ti. Não percebo porque te sacrificas dessa maneira – desabafou Eva Jesus, fixando a irmã que calada soltava mais um botão da camisa. Gostava de usar as golas abertas.

Laurentina queria retirar-se, para não continuar a ouvir sempre a mesma conversa, no entanto, ficou ali imóvel, apenas se olhando no espelho e recordando aquele instante que decidira a sua vida. Continuava a revivê-lo com angústia. Observou a imagem refletida. Mantinha o luto sobre os ombros, eco do pesar que lhe ia na alma.

– Ó, mamã! – ouviu gritar.

– Que queres meu querido? – Aproximou-se com a espécie de emoção que só uma mãe experimenta.

Sentia-se consternada cada vez que não conseguia satisfazer-lhe uma curiosidade. «Porque partiu o papá?», perguntara-lhe ele uma vez, e ela emudecera, continuando em busca da resposta.

Diziam-lhe que o reino de Deus era justo, ela duvidava. Por algum tempo, agarrara-se à bíblia, lera todos os versículos, depois entrara numa crise de descrença e hoje impressiona-a quem acredita no que quer que seja.

– Jacinto José!

Ele sorriu, sentado na cama, a chucha bem agarrada entre os dentes.

– Mas, meu filho, tu precisas de dormir. Sabes que a mamã necessita de descansar.

Quando regressou à sala, Eva preparava-se para sair.

– Porque te vais embora tão depressa?

A irmã baixou a cabeça sem lhe responder, depois deu-lhe um beijo e prometeu voltar logo que pudesse.

Laurentina ainda fez menção de repetir a pergunta, mas acabou desistindo e, assim que a porta do elevador se abriu, encolheu os ombros e recolheu-se em casa.

– Ah! O que é que o menino faz aqui descalço?

Três meses se haviam passado sobre o momento em que ficara só para cuidar do filho. Durante quatro dias havia permanecido junto do marido, esperando o milagre que não viera. Hoje, sentia-se abandonada, pela vida, pela sorte, por Deus. Laurentina sabia que a criança não podia continuar a viver naquele ambiente de profunda tristeza em que a casa mergulhara. Apesar disso, não conseguia afastar-se de um sentimento de desgosto, nem conseguia amar menos o pai de Jacinto José do que naquele dia em que se ajoelhara à sua frente e lhe pedira que casasse com ele. Muitas vezes, duvidava de que o que sentia se pudesse modificar. De tal forma a ideia de o deixar de amar era impensável que, só de imaginá-lo, se sentia agredida no seu íntimo.

E assim, neste arrastar-se, se passaram mais quatro meses e era ínfima a diminuição da saudade. A irmã e as primas bem tentavam arrastá-la para reuniões, que ela recusava com a delicadeza possível. No entanto, tinham conseguido apresentar-lhe dois rapazes que se haviam mudado para o bairro há pouco tempo. Queriam, porque queriam, arranjar-lhe um namorado, como se sete meses fossem suficientes para esquecer alguém, em especial alguém com quem se dividiu a vida, se partilhou alegria e tristeza, alguém com quem se gerou um filho. Laurentina pensava em tudo isto, enquanto olhava o recibo da renda, que não sabia durante quanto tempo iria conseguir pagar. Passava cada vez mais tempo sozinha, porque lhe incomodava a felicidade dos outros, não por uma questão de inveja, mas por a alegria reforçar a sua dor e junto dos outros se sentir ainda mais só.

Sentou-se na extremidade da cama, que se tornara grande demais, e resolveu que necessitava de mudar a sua vida, não tanto por ela, mas por Jacinto José. Foi a partir dessa altura, que começou a magicar numa ideia que guardou para si, deixando-a germinar sem pressas.

Quando faltava pouco mais de uma semana para o quinto aniversário do filho, percebeu que não poderia continuar a adiar a decisão que se impunha. Precisava reencontrar a paz que a vida havia apagado e isso implicava, não só abandonar a casa, que se tornara demasiado cara, mas mudar tudo.

Deixou o filho com a vizinha e caminhou, permitindo que fossem as pernas a escolher o destino. Ao fim de uma hora, estava diante da minúscula baía onde brincara em criança e onde conhecera e se apaixonara pelo marido. A superfície da água estava serena, bem diferente do sentimento que a envolvia.

Quando olhava aquela paisagem, chegava a pensar que Deus existia, mas bastava-lhe recordar o último ano para ter a certeza de que estava errada.

– Vem comigo – dizia-lhe ele em sonhos e ela queria ir, mas não podia. Se Jacinto José não existisse… Logo em seguida, recriminava-se por tal pensamento e tomava consciência de que a tristeza era o grande óbice para que pudesse seguir em frente.

Ali mesmo, diante daquele lugar mágico, jurou deitar mãos à vida e acordar do marasmo em que se enterrara.

Dormiu mal naquela noite, inquieta, mortificada pela sua fraqueza, infeliz por se sentir infeliz, obcecada por um círculo vicioso que a agarrava ao passado. Atormentada, levantou-se ainda de madrugada, procurando dar sentido ao remorso que a começava a minar. Como se deixar de ser infeliz constituísse uma traição.

Foi até ao quarto do filho e ficou a vê-lo dormir.

– Como posso saber o que é certo ou errado? – perguntou-se e acrescentou: – Hei! Se tu existes aí em cima, não me queres dar uma resposta?

O silêncio fez-se ainda mais pesado.

– Logo vi que não podia contar contigo – ironizou Laurentina.

 

 

– Agora o que vou fazer? – Laurentina olhava a carta que informava que o contrato não seria renovado, que os seus serviços não seriam mais necessários. No final do mês estaria na rua.

– Moça! – A voz do rapaz soou-lhe longe, ao mesmo tempo que o mundo parecia escurecer. Quando despertou, quase saltou de susto tal era o número de faces que se lhe sobrepunham.

– Afastem-se, deixem-na respirar – disse a mesma voz de rapaz.

– Se calhar está grávida – comentou alguém.

Ela sorriu, um sorriso triste. Como queria que isso pudesse ser uma realidade.

– Venha, vamos sentá-la ali naquele banco. – O rapaz ajudou-a a levantar-se e conduziu-a até à entrada do jardim.

Telefonou à irmã, que apareceu numa inquietação pouco habitual, num silêncio que a assustou ainda mais. Onde estavam os insistentes conselhos?

Sem pronunciar uma palavra, Eva Jesus leu a carta que Laurentina lhe estendera e, em seguida, mostrou-lhe a sua. A bem-aventurança andava longe daquela família. Percorreram a viela até casa de Laurentina, com a revolta a queimar-lhes a garganta.

Na sala, o filho brincava, alheio ao olhar molhado das mulheres, aos gritos sufocados, ao estado de desespero que lhes extorquia a esperança. Que poderiam fazer? Roubar? Que carma terrível era aquele que precisavam cumprir?

– Não faço ideia do que fazer – desabafou Laurentina, pegando na moldura com a fotografia do marido, falando mais com ele do que com a irmã, que parecia ainda mais abatida do que ela.

Jantaram em silêncio e, assim que terminaram de arrumar a cozinha, Eva Jesus desapareceu.

Ficava cada uma com a sua solidão, o seu marasmo, o seu desassossego, sem saber como continuar.

 

 

– Podes ir que eu tomo conta do rapaz – ofereceu-se a vizinha.

Laurentina deu início à caminhada solitária, prosseguindo numa passada decidida até ver diante de si o letreiro: «Centro de Emprego».

Quando, ao fim de três horas de espera, a funcionária lhe perguntou o nome respondeu:

– Laurentina Feteira Garces –, estendendo-lhe os documentos.

Logo que a mulher deu por finda a inscrição, perguntou:

– Acha que em breve poderei ter alguma resposta?

– Você quer dizer um emprego?

Laurentina confirmou com a cabeça.

– A senhora está fantasiando, desculpe que lhe diga. O próximo!

– Ah, sim – respondeu num automatismo, que os pensamentos não captavam. Deveria queixar-se, reclamar? De que serviria?

Andando sem firmeza, desceu as escadas. Torcendo as mãos e quase chorando, alcançou a rua. Passou pelo parque de exposições, mas só havia um anúncio, pedindo um entregador de pizza. Pena que ela não soubesse conduzir uma moto. Por fim, chegou a casa.

Um mês se passou, até que o toque do telefone lhe trouxesse um motivo para soltar a pressão que lhe invadia o peito.

Quando desligou, espreguiçou-se e olhou ao redor. Eram muitas as coisas de que precisava desfazer-se. Eram roupas demais, loiças demais, móveis demais. Até muitos dos brinquedos teriam de ficar para trás. O filho começaria cedo a aprender o significado de desapego, mas talvez isso não fosse mau.

– Posso ficar com este, mamã? Foi o papá que mo deu.

Era um brinquedo sem graça, um gato-pingado de má qualidade, mas nele estava todo o amor de quem o adormecera a cada noite, de quem inventara histórias e o fizera acreditar que a magia faz parte da vida.

– Como é Londres, mamã?

– Fria, meu filho.

Não era só fria de temperatura, era fria de distância, de isolamento, de solidão, de saudade.

 

 

– Jacinto José! – Ralhou a mãe, sentando-o e colocando-lhe o cinto. À excitação pelo primeiro voo, juntava-se o peso do longo adeus abraçado à tia, o caminho para o desconhecido, cujo motivo ele ainda não entendera muito bem. Sabia que «tinha de ser», pelo menos assim dissera a mãe, mas a tia não era da mesma opinião.

Quando saíram do metro, o frio de Londres recebeu-os. Estava um dia pardacento de neblina, incerteza e angústia, com resquícios de neve.

– Parece Natal, mamã.

Caminharam até ao cimo da rua, ela puxando as malas numa tentativa de que o filho não percebesse como eram pesadas, ele procurando esconder o secreto desejo de voltar para casa. Recebeu-os uma mulher de uns cinquenta anos, que a ajudou a carregar a bagagem pela escada estreita, já que o velho edifício não possuía elevador. O quarto era pequeno, mas tinha um ar acolhedor.

– Como se chama você, menino lindo? – perguntou a dona da casa, uma brasileira que chegara a Inglaterra em perseguição do sonho de ser modelo e acabara dona de uma pensão barata. Um sucesso diriam muitos, uma frustração achava ela.

– Jacinto.

– Pois muito bem, Jacinto, agora ajude mamãe a arrumar tudo e depois desça que lhe ofereço um pedaço de bolo.

– Muito obrigada, dona Aline – disse a mãe.

– Não me agradeça minha filha, sei bem o que é vir para uma terra estranha. – A voz ecoou num tom de simpatia, que reconfortou Laurentina. – E se precisar de o deixar comigo enquanto vai trabalhar, estou às ordens. Escusa de gastar dinheiro à toa – acrescentou, baixando a voz.

– Como poderia pensar que iria encontrar um anjo à chegada?

As mulheres sorriram e calaram-se, dando espaço aos pensamentos, às lágrimas não choradas que pesavam na alma, à esperança que tentavam não sufocar.

– Aqui tem a chave – disse, por fim, Aline Rosa afastando-se.

Laurentina abriu, então, as malas e começou a arrumar o pouco que trouxera. Se tudo corresse bem, depois mandaria vir o resto, mas por agora, aquilo teria de chegar.

Na manhã seguinte, o coração doeu-lhe, quando se despediu do filho. Sabia que era estúpida a angústia que sentia, mas não podia evitá-la.

– Mamã, não estejas triste. Eu fico bem.

– Vai ver que vamos nos divertir imenso e vou começar a lhe ensinar inglês. Tenho a certeza de que será um bom discípulo. – O sorriso de Aline Rosa conseguiu sossegá-la um pouco.

– Estás a ver mamã. Qualquer dia já posso perceber o que dizem na televisão.

– Tens razão, querido. Até logo.

O emprego no lar de idosos agradou-lhe. Era ocupado quase em exclusivo por imigrantes da américa do sul. O inglês ali pouco era falado, já que preferiam comunicar-se na sua língua de origem. Talvez tenha sido isso que a fez sentir-se mais perto de casa. Estava agradecida ao avô, que insistira sempre em falar com ela somente em espanhol. Agora, esse era o seu trunfo e tinha a certeza de que, estivesse ele onde estivesse, estaria orgulhoso dela.

O dia decorreu rápido, em parte pela novidade do serviço, em parte pela tentativa de fixar cada rosto e atribuir-lhe um nome. No final da tarde, decidiu ir a pé, ouvindo o estalejar das folhas cor de oiro a cada passo. Era um percurso de meia hora, que seria muito agradável se ficasse à beira-mar. Sentiu um nó no estômago. Quando voltaria a ver o mar? Quando conseguiria sair dali?

Parou num café italiano apinhado de gente e procurou um lugar para se sentar. Sentia saudades de um expresso. Bebeu-o mesmo ao balcão e prosseguiu o caminho num passo apressado.

– O que é que escondeste aí? – perguntou Laurentina, olhando o filho que se sobressaltara quando ela abrira a porta do quarto.

– Nada – respondeu o menino.

– Mostra lá isso.

Jacinto abriu a gaveta, como a mãe ordenava.

Laurentina desdobrou um papel e começou a ler.

– É uma oração – esclareceu Jacinto José. – Foi a dona Aline que me deu, diz que faz milagres.

Olhando para aquelas palavras, a mãe sentiu vontade de amachucar o papel, mas não poderia cometer tamanha ingratidão. Afinal, como poderia a mulher adivinhar o descaso de Deus por ela?

– A dona Aline diz que devemos ser sempre positivos e que assim tudo é possível. Não queres rezar comigo? Eu ainda não sei ler o que está aí.

Laurentina sentia-se isenta de qualquer obrigatoriedade de orar, mas como poderia tirar a ilusão ao filho? Repetiram a oração três vezes. Era assim que faria efeito no dizer sábio de Aline Rosa. Estranho que ela não tivesse conseguido ser modelo, pensou Laurentina.

Os meses foram passando e ela permanecia envolvida num permanente luar, ansiando por poder voltar a ver o sol.

Em Londres, quase toda a gente se mostrava inclinada a viver a própria vida, sem dar espaço aos outros. Aline Rosa era exceção e companheira inseparável de Jacinto José, que já se desenrascava bem no inglês de trazer por casa. O tempo de o inscrever no colégio aproximava-se e isso preocupava a mãe. Como o receberiam as outras crianças?

Aproximou-se da cómoda, abriu a gaveta e de lá tirou o pequeno papel que há muito ali fora esquecido. Abriu-o e rezou. Fê-lo, pela primeira vez em muitos meses, com um sentimento de entrega.

«Se não fizer bem, mal também não faz», costumava dizer a mãe.

De repente, alguém bateu forte na porta do quarto, fazendo com que ela desse um salto, e o seu coração disparasse. Quem poderia ser? Abriu e deixou-se ficar parada, sem reação. Não podia ser verdade. Os olhos estavam, por certo, a enganá-la.

– Eu disse-te que aparecia – afirmou a irmã, colocando as malas no chão. – Fiquei cansada de ter um país inteiro para mim e resolvi vir para um que pudesse partilhar com alguém.

Eva Jesus ficou parada, olhando-a, esperando o abraço que tardava a acontecer.

Laurentina desviou os olhos. Começava a entender que havia uma grande diferença entre entregar-se ao desespero ou acreditar que a vida poderia ser generosa com ela.

– Espera! – disse por fim. – Quer dizer que vieste em definitivo?

– Hum, hum!

Sem mais palavras caíram nos braços uma da outra. Ambas aguardavam há muito aquele encontro. A emoção que experimentavam era talvez a mais forte que alguma vez as unira, decididas a trilharem um caminho comum.

– Anda! – Laurentina deu a mão à irmã e apresentou-lhe a cidade. Percorreram as artérias apressadas, esquecidas dos pingos grossos da chuva, felizes, admirando o verde que crescia em todo o lado.

Quando o chapéu-de-chuva se tornou desnecessário, Eva Jesus sorrindo, procurou os olhos da irmã, querendo perceber se a mágoa se esvaíra. Verificou que não, mas nada disse, sabendo a inutilidade das palavras. Foi Laurentina quem a surpreendeu:

– Eu quero ser forte, esquecer, mas ainda que a minha mente se esforce por não lembrar, o meu coração toma o comando e agarra-se a esse amor que quero continuar a sentir. Percebes?

– Sim. Acho que sim, apesar de nunca ter amado com essa entrega. Deve ser bom.

Nesse dia, talvez para dar as boas vindas a Eva, a noite nasceu estrelada.

Quita Miguel

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