segunda-feira, 30 de março de 2015


CABRA!

 
Olhou as instruções uma última vez, antes de escalar o pilar da ponte e dar execução ao plano. Depois, ocultou-se no arvoredo, aguardando o momento de agir.

Um arrepio percorreu-lhe o corpo, num misto de frio e excitação, quando a viu iniciar a travessia. Ansiava pelo momento de carregar no detonador e mandar tudo pelos ares. Nunca mais ali passaria. Mas ela parara a meio, impedindo-o de executar o plano.

«É mesmo uma cabra!», pensou.

Não esperou…

Quita Miguel

Desafio nº 87 em 77 palavras

segunda-feira, 23 de março de 2015

Ardina

Para abarcar a angústia na alma do Chico, só ouvindo a sua história. Ardina, por uns bons longos anos, distribuíra notícias boas ou más, com a ajuda da já gasta sacola. Quando abandonara o trabalho, não por opção, mas por cansaço, a sacola acompanhou-o, lavrando a biografia.
 
Agora, caído na calçada, maldiz o ladrão. Roubara não um comum pano, mas um boc ado da história da sua vida, do dia-a-dia andarilhando nas ruas, do amor por uma profissão.

Quita Miguel
 
Desafio nº 86 – Chico ardina sem E
MAU AGOIRO

O despertador tocou o habitual som estridente e irritante. Iara abriu a janela. O sol mal começava a nascer. Como eram difíceis os primeiros movimentos. Foi até ao quarto de Manuel Carlos para o despertar. Olhou-o, constatando como estava a ficar crescido. Custava-lhe acordar o filho tão cedo, mas não havia outro jeito. Pelo menos, no dia seguinte seria Sábado.
Deixou o miúdo na escola e correu rumo ao autocarro. Se chegasse atrasada teria de ouvir o antipático Sr. Aurélio. Preferia deitar os bofes pela boca a sujeitar-se à lengalenga acompanhada de perdigotos.
Conseguiu picar o ponto, quando o relógio marcava as nove horas, safando-se, por segundos, ao matraquear sobre a importância de se respeitar as normas, os horários, os colegas, a empresa. Ela sabia tudo isso, mas era só uma mulher e uma mulher só, não um ser que conseguisse teletransportar-se.
O dia decorreu lento, fazendo com que a semana de trabalho parecesse não ter fim. A caminho da escola, para recolher o filho, cruzou-se com um funeral, sinal de mau agoiro para uma supersticiosa como ela. Desesperada, procurou um pedaço de madeira onde pudesse bater os nós dos dedos, mas só metal, plástico, vidro e cimento a rodeavam.
Um pouco mais à frente, viu uma pequena casa de habitação com o portão aberto. Talvez desse tempo. Num passo rápido, percorreu a centena de metros que a separava da salvação. Entrou sem pedir licença, aproximou-se da janela e satisfez a necessidade de afastar o mau presságio. 
 
 Em resposta à sua leviana batia, abriu-se a janela, revelando uma face mal-encarada. Uma voz gutural inquiriu:
– O que é que quer?
Na ausência de resposta, saiu do interior da casa um dedo esticado em direção à cara de Iara e uma ameaça:
– Ou se põe já daqui a andar ou chamo a polícia.
A mulher tentou, no seu jeito confuso de pensar, explicar e inexplicável e quanto mais falava, mais embravecia o homem, que a olhava de dentro do quarto. Acabou a justificação, pedindo desculpa e girando nos calcanhares, no momento em que ele estendia o braço em direção ao telefone.
Restaurado o sangue frio, regressou à paragem do autocarro, a tempo de verificar que o acabara de perder. O próximo só daí a uma hora, tempo de que ela não dispunha.
Ir a pé, não era opção. Contou o dinheiro na carteira: táxi não era opção. Restava-lhe telefonar para a escola e pedir, por amor de Deus, que alguém ficasse com o Manuel Carlos até ela chegar.
Ao décimo toque, uma voz enfastiada disse:
– Estou?!
Iara explicou a situação, tendo o cuidado de não revelar a causa do atraso, e obteve, como resposta ao seu pedido, uma pergunta:
– O que é que acha?
Ela não achava nada, queria apenas que lhe dissessem se alguém podia ficar com o Manuel, mas o silêncio eternizou-se do outro lado. Seria que haviam desligado na sua cara? Não, era o telemóvel que morrera para a vida. Esquecera-se de o carregar.
Desesperada, começou a pedir boleia aos carros que passavam apressados. Ao fim de algum tempo, um velhote parou e, sensibilizado com a história, prontificou-se a levá-la até à escola.
– A menina sabe, tenho este carro desde que o meu filho nasceu e nunca me deixou na mão?! Não anda muito depressa, afinal são já 40 anos e muitos quilómetros percorridos, mas devagar se vai ao longe, não é mesmo?
Iara olhava o relógio, desesperada. Os minutos corriam velozes, os quilómetros passavam lentos. Quase sentia vontade de pisar o pé que acariciava o acelerador.
– A menina está nervosa.
Ela sorriu um sorriso amarelo, constatando que, naquele preciso momento, as portas do colégio estavam a ser encerradas e o filho estaria… não concluiu o pensamento por receio do que ele pudesse criar.
O autocarro, em que ela deveria ir se se tivesse limitado a esperar, ultrapassou-os e depressa desapareceu no final da estrada.
– Eu sabia que era mau agoiro, eu sabia! – gritou para espanto do homem que a olhava incrédulo. – Cuidado!
Tarde demais. O embate foi inevitável e a boleia ficou por ali.
Quase enlouquecida saiu e começou a correr desenfreada, convocando mentalmente todos os anjos e arcanjos para a auxiliarem naquela hora de desespero. Quando curvou a última esquina viu Manuel, brincando à macaca com dois colegas, sob o olhar atento de um pai.
– Ó mamã, onde te enfiaste?
– É uma longa história, meu filho. Não sei como lhe agradecer – disse, dirigindo-se ao pai dos gémeos.
– Não se preocupe, sei bem o que é ter o tempo contra nós. Hoje por si, amanhã por mim. Vá rapazes, vamos para casa.
«Que homem simpático, afinal parece que não foi assim tão mau agoiro», pensou Iara, caminhando de mão dada com o filho.

Quita Miguel

quinta-feira, 12 de março de 2015

Mulher
Gosto dos filmes que me desidratam, daqueles em que ensopo um pacote de lenços, solto um ou dois «que bonito!», acompanhado de um soluço e termino com olhos de cachucho.
É verdade que também me preenche soltar uma boa gargalhada, mas confesso que não é fácil fazer-me rir.
Já para verter o líquido salgado das lágrimas é preciso bem pouco. Um animalzinho abandonado, alguém que se prontifica a ajudar e a torneira abre-se.
Sou uma chorona assumida.

Quita Miguel
 
Desafio RS nº 23 – história de mulheres

terça-feira, 3 de março de 2015

Quieta Desistência

A minha mãe morre ao pôr de um sol que a tinge de tom rosa suave, num momento que atinge as margens da perfeição, numa quietude de desistência.
Por um momento, observo-a com as mãos dolentemente entrelaçadas, depois chamo a atenção da minha irmã, fazendo-a notar a morte da mãe, mas ela, dolente, mente entre laçadas nervosas da camisola que tece para prenda de Natal:
– Está a dormir. Vais ver que logo acorda.
Sorrio, fingindo que acredito.

Quita Miguel
 
Desafio nº 85 – expressões homófonas