Amo o dia e amo a noite, enquanto tu te perdes nessa tristeza que é já uma
couraça. Olhas-me sem me compreenderes, e eu baixo o olhar incapaz de explicar
que gosto da luz que me ilumina o caminho, mas também da escuridão que me faz
repensar as escolhas feitas.
Acusas-me de viver numa mentira, mas ela é melhor do que a tua verdade, por
isso, salto da cama, bem cedo, para apreciar o amanhecer de uma cidade
fantasma, aquela onde ainda ninguém acordou e posso ouvir o dia despertar.
Queres saber o porquê do meu sorriso quando, à tarde, espreito pela janela,
e respondo-te que é bom ver o entardecer da natureza, as aves que chilreando
regressam às árvores, as flores que se curvam, o sol que adormece. Avanças um
passo e pousas as mãos nos meus ombros, num gesto de posse, e então
apercebes-te de que não te pertenço. Observamo-nos sem uma palavra, dando-nos
conta de que eu não suporto a tua tristeza e tu não suportas a minha alegria.
Sorris, um sorriso triste, e caminhas em direção à porta. Paras antes de sair,
mas não te viras. Avanças até à entrada do jardim, mas não consegues dar o
passo para te religares ao mundo. São demasiados os meses, encerrado sobre ti
mesmo.
Esperas que a noite caia, te esconda o olhar infeliz, para regressares a
casa e de novo mergulhares nesse modo de viver, que te desgasta, me desgasta,
nos desgasta.
Na manhã seguinte, sem esperar que acordes, vou ver a cidade despertar,
ansiando pelo dia em que compreendas o quanto é bom viver, seja de noite, seja de
dia.
Quita Miguel