terça-feira, 6 de outubro de 2015


EMBALADO PELAS CHAMAS


Quase no ponto – disse Francisco Campina em voz alta, sentindo a excitação amplificar dentro da sua cabeça atormentada.
A visão da serra mudara para vermelho-fogo, ao revelar uma coluna de chamas delicadas, que começava a ganhar expressão. Uma realidade sublime.
Campina conhecia bem os limites do seu autocontrolo desde que, ainda criança, incendiara por acidente a capoeira e se quedara ali, vendo-a arder num misto de paixão e medo. O fogo merecia-lhe tal exaltação que chegou-se a vaticinar que seria bombeiro, mas depressa se percebeu que a sua motivação era outra, tendo ficado conhecido na rua como Chiquinho Labareda.  
«Que maravilha!», repetia sempre que se deparava com a visão ardente de uma esplêndida fogueira, que imaginava de súbito a engrandecer, marcando o seu espaço, dominando o horizonte. Existiriam muitos como ele que… hum… adoravam o fogo? Não fora difícil encontrar a resposta. Os outros, todos sem exceção, até aquela feia, a quem o sono de beleza não produzia efeitos, catalogavam-no como anormal. A solução fora partir, sem olhar para trás, quando as permissões de criança terminaram, e a maioridade foi atingida. Ficou longe por muitos anos, mas algo inexplicável o atraía agora àquelas terras sequiosas de cor. Saudade? Necessidade de reconhecimento? Vá lá alguém saber que mistérios nos empurram numa ou noutra direção.

No momento em que Chiquinho Labareda estacionou à beira da praia da Figueira, o Citroen parecia uma lata amassada. Talvez devesse ter parado para ver o que acontecera ao outro carro, mas a excitação consumia-o demais para poder pôr cobro ao caminho. Era á distância que gostava de observar o espetáculo que produzia, como se esta realçasse a sua imponência. Por isso, sentira urgência em descer a serra. Quando tudo ganhara uma dimensão incontrolada, sentiu-se satisfeito e rumou até à praia. Abriu a janela, colocou o braço de fora e ficou ali a olhar o mar, ganhando coragem para regressar ao lugar da infância. É estranho como o passado, às vezes, nos intimida mais do que um batalhão de polícias nos calcanhares.
Francisco sabia tudo acerca daquela gente amedrontada, a quem o corpo estremecia ao mais pequeno sinal de fumo. Lembrou-se da vez em que o tio, ao ver as chamas galgarem a estrada em direção à quinta, tivera uma trombose, que lhe tolhera o lado direito.
Chiquinho Labareda sorria, um sorriso de escárnio, à medida que atravessava a cidade, rumo à aldeia que se lhe deparou congelada no tempo. Saudou-os (aos que conhecia e aos que via pela primeira vez) evitando-lhes o olhar, enquanto percorria as ruas da sua infância. Queria confundir-se com o asfalto e as árvores que surgiam no horizonte, ao mesmo tempo que ansiava ser reconhecido. Sempre fora um homem de contradições.
Imobilizou-se em frente da casa, que mantinha o aspeto de quando Chiquinho Labareda a vira pela última vez, excetuando o facto de o jardim ser agora uma placa de cimento com vasos de flores mal cuidadas. Encontrou a chave no velho esconderijo e, antes de atravessar a porta, deitou mais um olhar à floresta, que ao longe mostrava a personalidade enxameada, e no meio da qual Boaventura José retomava a consciência, após a onda de choque do embate do carro que, ao espalhar-se-lhe pelo corpo, lhe quebrara os sentidos.

Como é possível que estes sacos de merda tenham carta de condução? – rugiu Boaventura, esmurrando o volante com tal força, que ouviu os dedos estalar como o crepitar de uma fogueira.
Com uma estocada, escancarou a pesada porta e saiu, cambaleando até embater contra uma árvore.
– Oh, por favor, por favor – rogou sem saber a quem, esperando que alguma força desconhecida o atendesse ao sentir-se sem ar e invadido por náuseas.
Prostrado, olhava em volta, procurando uma resposta, porém não conseguia descrever o que sentia, não por palavras. Descansando a fronte contra a árvore, lutou por ar, que logo em seguida expirou, soltando um sopro de vapor, como se fosse um dragão.
O relógio assinalava já as dez da manhã. Estivera desacordado demasiado tempo. Como podia sair dali e levar consigo tudo o que era de valor? Vasculhou a mochila, pegou no telemóvel, virou-o com insistência para norte e para sul, para este e oeste sem que o sinal de rede se dignasse dar um ar da sua graça.
Okay – disse para consigo – estás por tua conta. – Com desalento, colocou o telefone no bolso, ao mesmo tempo que o cheiro de fumo se apoderava das suas narinas.
Da mala do carro retirou as luvas, calçou-as e agachou-se para examinar a destruição. O cheiro a queimado não provinha dali, contudo reconheceu, de imediato, que não havia como tirar o carro daquele lugar. Derrotado, levantou-se e foi com assombro que viu as imagens que se lhe perfilavam na mente. Nesse momento, bem à sua frente, as árvores transformavam-se num frenesim de estrépitos, que as chamas esquartejavam como que possuídas de dentes e garras. Recuou num instintivo impulso muscular, mais do que por ordem cerebral, quando os pelos do braço direito começaram a cheirar a chamuscado, como quando a mãe, após matar e depenar a galinha, a passava sobre a chama.
Correu desalmado por mais de dois minutos, o tempo que o fôlego durou até se sentir asfixiar. Olhou para trás temendo o pior, no entanto, nada acontecia. Era como se as chamas tivessem desistido de o perseguir. Sentou-se, procurando retomar um ritmo cardíaco que permitisse oxigenar o cérebro. Inspirou e expirou profundamente uma meia dúzia de vezes, e quando o corpo começava a sossegar, mais uma vez o lumaréu correu na sua direção. Aquela mudança constante do vento até parecia uma manobra de diversão de Vulcano numa demonstração demoníaca de poder. Uma labareda enviou-lhe uma segunda lambidela à pele, agora ao braço esquerdo, ao mesmo tempo que o ar lhe faltava, o fazia perder o equilíbrio e o levava a tombar sobre o flanco direito, deixando que uma lasca lhe penetrasse a coxa.
Seria que alguém se dera conta de que ele estava no meio daquele inferno?

No quartel dos bombeiros a impaciência acumulava-se. Belarmino Antas chegara ao aquartelamento à hora habitual, faltavam então quinze minutos para as oito de uma tranquila manhã de final de verão. Agora, a quietude fora trocada pela agitação que os envolvia em preparativos, que, ao longo dos anos, se haviam repetido vezes demais.
– Vamos fazer alguma coisa ou apenas olhar uns para os outros a manhã inteira?... – disse, de um modo forçado, espicaçando quem, em frente ao mapa da serra, definia a estratégia e distribuía os meios.
O comandante dos bombeiros fitou-o imóvel, os dedos presos no cinto, o olhar desviando-se para o retrato pregado na parede atrás da secretária. Jurara a si mesmo, que naquele ano não iria permitir sacrificar qualquer elemento da sua corporação, por isso tudo era visto e revisto, analisado e reconfirmado, antes de enfrentar o inimigo incerto e traiçoeiro. Voltou a olhar o grupo e, com voz autoritária, disse:
– Barreiro! A estratégia é a seguinte. – Tirou o mapa de cima da mesa, foi estendê-lo no capô do carro de comando e em breves palavras desenhou a organização das equipas.  
Tão depressa como os outros, em poucos segundos, Antas e Barreiro estavam dentro do camião-tanque. O calor gelava-lhes as veias, ao recordarem aqueles que, no ano anterior, haviam sido enredados pelo fogo, num cenário que os mais brandos apelidavam de inferno.
Alcançados os pontos de ataque, depressa as mangueiras ganharam vida, assemelhando-se a serpentes tortuosas, que cuspiam peçonha para as galfeiras do fogo, que recuava encolhido, para mais adiante ganhar novo fôlego, atacando-os sem constrangimentos, servindo-se do vento como alimento para a sua ferocidade.
Lutavam já há mais de uma hora, quando os meios aéreos foram liberados pelo comando central, e um helicóptero começou a expelir água de uma bolsa que parecia pequena demais para uma floresta que se consumia. Eram litros que escorriam pelos troncos arfantes de calor, refrescando-os, mas apenas por breves instantes, pois logo as chamas ressurgiam fumegantes, procurando queimar o pouco que resistira à consumição.
No meio desta tortura, Boaventura José procurava proteger a pele que começava a ganhar bolhas, derramando sobre si o magro conteúdo da garrafa de água que a mãe, sempre precavida como todas as mães, lhe colocara no interior da mochila.
Com as mãos trémulas procurou um lenço, que amarrou em volta da cara, que nem cowboy em filme de far west, mas cowboy apeado que estava mais para boi assado, do que para vitorioso guerreiro.
Procurou orientar-se. Na última hora, andara a fugir das chamas que ganhavam cada vez mais velocidade e que ameaçavam circundá-lo, armadilhando-o num mar vermelho de secura e ardor. Agora, parecia que o vento lhe oferecia algum descanso, mas temia que por pouco tempo. Olhou em volta, tentando perceber de onde viria o maior perigo, porém os olhos lacrimejantes, e o fumo que se adensava, não lhe permitiam vislumbrar para além de um ou dois metros.
Caminhou por mais alguns minutos, mas a dor na perna latejava a cada passo. Olhou para trás e percebeu que deixava um pequeno rasto de sangue. Levou a mão à coxa, e o choque foi tal que o imobilizou por completo. Perdeu a noção do tempo, deixando-se ficar estático, sem coragem até para se sentar e aguardar o fim. Sabia que se o vento rodasse mais uma vez, estaria perdido. As forças haviam-se esgotado. Pensou na mãe. Veio-lhe à memória a imagem terna daquela manhã. Ela na ombreira da porta, de mão levantada num misto de tristeza e orgulho, vendo-o desaparecer na esquina da rua, que conduzia ao novo desafio. Era a estreia do aluno universitário. O primeiro na família que seria doutor, ou não. Ao fazer fé naquele cenário, ainda não seria desta vez que o estatuto educativo da família sofreria um upgrade.
Apurou o ouvido. Seriam motores, aquilo que escutava, ou era a exaustão que tomava conta dos seus sentidos? Sondou os ruídos mais um pouco. Sim, o som provinha sem dúvida de algo mecânico, mas que se afastava.
– Não. Por favor, não! – gritou, fazendo um último esforço para se mover, se aproximar do final da subida, mas era como se alguém lhe agarrasse as pernas. Pouco conseguia andar, contudo não desistiu. A mãe fizera dele um lutador, ao ensinar-lhe que as barreiras são colocadas na vida para nos fortalecer, não para nos derrubar. Aquele som, agora cada vez mais distante, era a melhor hipótese de encontrar uma saída, e fora o alento que necessitava para encarar a elevação. Parou por breves instantes para recuperar o fôlego, as mãos nos joelhos, as costas dobradas. Estava quase lá, mais um pouco e poderia ver o que se passava do outro lado da encosta. Respirou fundo e quando levantou um pé na tentativa de mais uma passada, o outro pé resvalou debaixo de uma onda que descia a vertente, fazendo-o cair de borco, enfiar a cara na lama, envolto por um mar que o engolia. O que acontecia? Como é que do meio do fogo surgia Neptuno, derrotando as poucas forças que lhe restavam e o repunha no início da escalada, ali no fundo onde ninguém parecia querer chegar.
Rodou sobre si, as lágrimas misturando-se com a água barrenta que lhe cobria a pele e lhe amaciava a roupa. Derrotado olhou o céu. Foi nessa altura que viu o helicóptero afastar-se. Suspirou ao tomar consciência de que estava livre do fogo. Fechou os olhos e, esgotado, permitiu-se adormecer.
Quando retomou a consciência estava numa cama de hospital, os olhos chorosos da mãe ganhando expressão de alívio, ali bem na sua frente.

O fogo estava controlado, mas havia sido a teimosia de Antas que salvara Boaventura, ao recusar-se a regressar ao quartel sem encontrar o condutor do carro, cujo esqueleto o fogo pusera à vista.
Durante a busca, Belarmino Antas recolhera tudo o que se lhe atravessara no caminho e que pudesse ser usado para identificação da origem do fogo, que, não duvidava, era criminosa. Alinhou os achados na mesa de refeições do quartel, agora transformada em laboratório de investigação.
– Não que isto seja assunto meu, mas, uma vez que o gajo da Judite não aparece, posso tentar ver que tipo de acelerador foi usado – propôs Antas, dando de novo expressão à impaciência.
– Não estou a ver o comandante ir nessa conversa – resmungou o motorista da viatura-tanque, que tudo o que queria era tomar um banho e esticar as pernas.
Os olhos de Belarmino apertaram-se, mas acabou por baixar a face e afastar-se de Barreiro, que lhe piscou o olho, como quem diz: «Sossega o facho. Hoje já salvaste um gajo.».
O som de passadas pesadas e determinadas, avançando pelo corredor, foi o introito para o recém-chegado inspetor que, sem cerimónias, irrompeu pela sala com olhar crítico e, não escondendo a consternação, perguntou:
– Foi só isto que recolheram?
– Gostaria de o ver…
Doutor D’Orey, o senhor já sabe as notícias? – interrompeu Barreiro, evitando que Antas cometesse outra gafe de protocolo, que acirraria ainda mais as relações com a polícia judiciária.
Não – disse o inspetor da Judiciária. – Acabei de chegar.
– Parece que o Chiquinho Labareda deu à costa.
Quem?
Em poucas palavras, o doutor D’Orey foi colocado ao corrente da situação e esclarecido sobre o perfil psicológico da personagem, de quem ninguém, ao longo dos anos, sentira falta.
– Quem lhe disse isso? Há quanto tempo é que ele está cá? Foi visto na serra?
Não era possível atribuir verdades a ninguém. Eram somente vozes, que começavam a circular e a espalhar-se no ar à velocidade do fogo. No entanto, aquela era a melhor hipótese que se vislumbrava para encontrar um culpado.
A casa de Francisco Campina foi circundada, o circo montado, mas a experiência dos envolvidos… bem, há sempre uma primeira vez. O conhecimento absorvido devia-se mais a séries americanas, do que à vivência do dia-a-dia. Avança-se? Negoceia-se? Mas negoceia-se o quê? Será que há alguma coisa a negociar? Através da janela podia ver-se o rosto incomum daquele que, já em criança, era considerado pouco desejável.
O doutor D’Orey, por muito pomposo que lhe fosse o nome, nunca se vira em tal imbróglio, mas um tipo da Judite nunca dá ponto de fraco, muito menos perante um amontoado de bombeiros e de pacóvios que se acham polícias. Ele era o homem em comando e isso agradava-lhe, afagava-lhe o ego. Sentia-se até mais alto.
Calculando, com presteza, a situação e possíveis repercussões, observou, mais uma vez, o rosto que se escondia atrás da janela, enquanto aguardava o mandato de busca emitido pelo tribunal. A imagem que viu revelou-se de tal modo assustadora que não pôde conter o desabafo:
Ele pintou a cara. Como podemos derrubar alguém que pensa que é Deus… ou o Demónio?
Todos os olhares se voltaram na direção do representante da polícia judiciária e o silêncio foi absoluto. D’Orey mantinha os olhos fixos naquela janela, onde os outros agora também cravavam o olhar e distinguiam, através dos vidros que o sol invadia, uma cara com listas pretas, desenhadas a todo o comprimento da face.
A quebrar o mutismo esteve a gargalhada nervosa que a mãe de Chiquinho Labareda soltou, ficando de imediato ali a soluçar, paralisada entre as forças da ordem e os curiosos. O inspetor da judiciária, expressando com a língua um estalido impaciente, trocou um olhar com o comandante dos bombeiros, percebendo que a coisa não se iria resolver sem uma tomada de decisão das forças da ordem. Remoeu na memória os cursos de formação, que nunca tivera oportunidade de colocar em prática, e resolveu armar-se em psicólogo.
– De que tem medo, senhora Campina? – perguntou, expressando a tranquilidade que não sentia.
Ela olhou-o, primeiro com desconfiança, depois com interesse e, por fim, com desespero, dizendo:
Deixe-me trinta segundos, sozinha com ele.
D’Orey hesitou. Se alguma coisa corresse mal poderia significar o fim da sua carreira ou pelo menos a impossibilidade da ascensão que sempre ambicionara. Na sua frente, estavam os olhos lacrimosos da mãe, que criara o monstro, e à sua volta aqueles que dariam tudo para ver o inspetor errar, meter a pata na poça, estender-se ao comprido. Porém, a audácia era uma característica sua, ninguém o podia negar, por isso decidiu arriscar. Com um leve aceno de cabeça comunicou a concordância, que a senhora Campina recebeu com alívio, atravessando a estrada. Quando abriu o pequeno portão, o filho olhava-a escondido atrás da janela à sua direita, camuflando a mente através de um olhar sem alento.
Com as pernas trémulas, a senhora Campina percorreu o espaço, que em outros tempos fora o jardim onde o filho aprendera a andar e que dava acesso à pequena casa. Aguardou a permissão de Francisco e, quando entrou, encontrou-o já sentado à mesa de jantar. Abanou a cabeça, pegou-lhe nas mãos e puxou-o para ficar de pé junto de si. Ele endireitou-se, sentindo um calafrio na espinha. Depois, ela tomou-lhe a face nas mãos, procurando-lhe os olhos. Estava diante dele, toda emocionada. Quantos anos tinham passado? Não sabia ao certo. Durante os primeiros dez, contara cada dia, somando um ao seguinte e dizendo para si «amanhã ele volta». Depois, sem razão que desse causa à mudança de atitude, perdeu a esperança e, passado algum tempo, duvidara mesmo que ainda estivesse vivo.
Muitas vezes, o imaginara vitimado pela própria loucura, devorado por um fogo a que tivesse dado vida. Agora, estava ali diante de si. Sentia-o com as suas mãos.
Fitou o crucifixo de madeira, pendurado na parede atrás da televisão. Esse símbolo, outrora imponente, já não era para ela uma fonte de temor, mas de agradecimento. O seu menino estava vivo, estava de volta. Isso só poderia ser bom. Ou não…
Foi a primeira a tomar a palavra.
Precisamos de ter uma conversa.
De que género? – perguntou Francisco, dando meia volta.
– O que achas? Tantos anos e nem uma palavra. Será que te dás conta do meu desespero pelo teu abandono? Porquê?
D’Orey e o chefe da polícia agacharam-se junto à janela, procurando escutar algo que os elucidasse sobre o desenrolar dos acontecimentos. Se houvesse perigo eminente, poderiam entrar com ou sem mandato judicial, mas as vozes eram demasiado baixas, como que contendo toda a emoção latente.
– Porquê? – repetiu a mãe.
Chiquinho Labareda desatou a rir, como se fosse a coisa mais divertida que ouvira na vida.
– E porque não? – perguntou, desafiando-a.
Os olhos dela perderam o brilho. Baixou a cabeça, deixou as mãos caírem-lhe ao lado do corpo e pesadamente sentou-se no sofá.
Muitas vezes, se questionara o que poderia ter feito para que o filho fosse como os outros, mas nunca conseguira dar resposta a essa incógnita. Era seu filho e isso bastava para que o continuasse a amar, como sempre amara, mesmo quando com crueldade largava fogo às lagartas, só pelo prazer de as ver consumirem-se em agonia.
– Porque voltaste?
– E porque não? – questionara de novo, numa indiferença que à mãe trespassava a alma.
Talvez se o pai não os tivesse abandonado, quando ele ainda mal largara as fraldas, as coisas tivessem sido diferentes. Mas de que serviam agora os «ses» da vida? Estava diante de si um olhar que a intimidava, ao mesmo tempo que a fazia desejar que o filho não tivesse regressado. Nunca imaginara poder experimentar tal sentimento. No entanto, agora que pensava nisso, recordava-se de ter sentido um certo alívio quando se convencera de que ele estava morto.
– Teria sido melhor – verbalizou, mais para consigo, do que para ser ouvida por Francisco.
– O quê?
– Que nunca tivesses voltado. Foste tu que provocaste mais esta desgraça, não é verdade?
O filho limitou-se a sorrir-lhe, com um esgar de escárnio que confirmava a suspeita, sem no entanto o fazer.
 – Há alguma coisa que possa fazer por ti? – perguntou a mãe, com o desalento de alguém que se vê derrotada pela vida.
– Se me arranjares um fósforo – respondeu, retirando do bolso direito das calças um frasco de metal, daqueles que é costume usar para ter à mão um pouco de whisky, que possa transmitir algum calor ou relaxamento em caso de imediata necessidade. Todavia, quando o desenroscou, não foi o cheiro da bebida que preencheu o ar, mas sim um odor forte e intoxicante da gasolina.
– Que vais fazer com isso?
A prostração da senhora Campina era agora substituída pelo terror, que lhe assombrava a face. Quis correr para a porta de entrada, gritar por ajuda, mas o olhar desorientado que a fixava impedira-a de se mover.
– Então não há fósforo? Não? Também não é necessário – afirmou, elevando de um modo quase impercetível os cantos da boca, ao mesmo tempo que mergulhava a mão no bolso esquerdo. Permaneceu estático por algum tempo, como que gozando a intensidade do momento. Depois, retirou sem pressa a mão, mantendo-a fechada por mais de um minuto, bem na frente da mãe, após o que os dedos se foram abrindo, um a seguir ao outro, revelando um objeto brilhante estendido na palma da mão: um isqueiro.
Com um impulso do polegar abriu a tampa e fez girar a roda que alimentou a faísca, da qual brotou a chama bruxuleante, que lhe nutriu o brilho dos olhos.
– Que tal aquecermos um pouco o ambiente? – propôs, aproximando a chama do gargalo do frasco. – O que acha se eu espalhar o líquido pelo ar? Já imaginou o clarão que se formará, num misto de cores quentes que iluminarão a sala? Não quer pôr uma música? A mãe gosta tanto de música. Que tal a marcha fúnebre? Está pronta?
Quando Chiquinho Labareda simulou o lançar da gasolina, a mão invisível que apertava a garganta da mãe sumiu como que por encanto, e a senhora Campina conseguiu verbalizar todo o seu pânico.
– Nãããooo!
O grito estridente despertou os observadores, que, no exterior, de respiração suspensa, aguardavam o momento de agir.
D’Orey, na linha da frente, fez sinal aos polícias para que arrombassem a porta de entrada, mas antes que estes se pudessem aproximar, já Antas de agulheta em punho quebrava os vidros da janela e enviava a pressão da água na direção de Chiquinho, que, com a violência do jacto, fora jogado contra a parede, ficando imobilizado pela força do líquido que mais abominava.
Algemado, foi conduzido para o carro da polícia, agora olhando a multidão nos olhos, expressando todo o seu orgulho, ao sentir-se reconhecido como o obreiro de tão belo espetáculo. Só lhe doía ter sido vencido pela água.
Para D’Orey fora um dia histórico. Na casa, nada encontraram que pudesse comprovar as suspeitas, mas bastou abrir a mala do Citroen amolgado, para que as acusações fossem fortemente sustentadas. Marcara um ponto para a escalada dentro da Judiciária que se previa íngreme, mas inevitável.
No entanto, para todos aqueles que presenciaram o cerco, o verdadeiro herói fora Antas que, agora, no balcão do Bar Central, recebia cumprimentos e brindava com os seus pários: «Pela floresta!

QUITA MIGUEL

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