segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

A ALIANÇA DA DISCÓRDIA



Foi até à janela que dava para as traseiras do hotel. Que vista deprimente, que silêncio medonho. Como sentia falta de casa. Bebeu mais um pouco, à medida que revia pela terceira vez a apresentação que deveria fazer na manhã seguinte. Analisou o tom de voz, assegurando-se de que transmitia seriedade, confiança e dinamismo: uma combinação vencedora.
– Se ao menos eu acreditasse em metade do que digo – comentou num tom sarcástico, observando a própria fisionomia ao espelho.
Mentia de modo deliberado, como se mente no mundo dos negócios. «E se desta vez dissesse a verdade? E se deixasse queimar aquele negócio de dois milhões?»
Sorriu do seu pensamento irreal. Como se ele tivesse coragem de se jogar na figueira e de se ver atirado porta fora a caminho da fila de desemprego. Mas que seria uma boa forma de se vingar pelo facto de o terem obrigado a cancelar as férias, lá isso seria. Uma vingança desproporcional, porém saborosa. Sorriu, um sorriso triste, consciente de que nunca teria audácia para tal.
O telemóvel interrompeu a autocomiseração.
– Olá amor, estava pensando em ti – mentiu também àquela que mais amava.
Prometera à mulher que festejariam todos os aniversários de casamento num lugar paradisíaco e, logo no primeiro ano de celebração, vira-se impedido de cumprir a promessa.
A voz da mulher denotava toda a mágoa. Teria de a surpreender pelo menos com uma prenda à altura da ocasião, em especial agora que a gravidez a tornara hipersensível. No dia seguinte, no freeshop de Milão conseguiria, por certo, algo que abrandasse a fúria.
– Sim Bibiana, vou diretamente do aeroporto para o restaurante. Se me atrasar um pouco, podes ir tomando um aperitivo.
– Quer dizer que vou ter de ficar à seca? Para isso, é melhor esperar em casa. Ou, se calhar, o melhor é mesmo nem sequer ir jantar. Aliás, se quiseres ficar por aí não te acanhes, afinal é apenas o primeiro aniversário de casamento, nada de importante. E sabes muito bem que não posso beber álcool.
– Ó amor, não te estejas a aborrecer. – «Que boca grande a minha, porque é que não me calo?» – Disse aquilo só pensando no caso de poder haver muito trânsito. Vais ver que corre tudo bem e o nosso jantar será maravilhoso.
Ao desligar, invejou os amigos solteiros que podiam escolher livremente as datas a festejar. Porém, de imediato, se arrependeu de tal pensamento. Recordou como o coração vibrara quando Bibiana percorrera a nave da igreja, num vestido que realçava as curvas do corpo, mais do que seria conveniente numa cerimónia religiosa. Contudo, ninguém se atrevera ao mais leve comentário, pelo menos frontal. A personalidade da mulher sempre fora forte, ignorando, por completo, a opinião dos outros. Fora essa característica, uma das principais responsáveis pela sua paixão, bem… essa e aquele corpo escultural. Agora, não tanto.



Despertou confuso, quando a parede do quarto estremeceu. Tremor de terra? Não! Briga no quarto ao lado. Pelo barulho, o aposento deveria parecer um campo de batalha.
Que drama estaria por detrás daquele desentendimento, que o acordara sem pejo? Se ao menos discutissem em português, em inglês ou numa outra língua que ele pudesse compreender, mas as vozes alteradas verbalizavam algo semelhante a chinês.
De novo, alguém era atirado contra a parede, uma cadeira e uma mesa eram arrastadas, vozes furiosas rompiam a noite até que um som metálico pôs termo à discussão.
Por cinco minutos, o silêncio foi absoluto, seguindo-se o som de móveis a serem recolocados no lugar, a porta a abrir e a fechar.
«E se o mataram?», pensou Alberto José. «Talvez devesse telefonar para a receção. E, se depois, a polícia me quer ouvir? E se me obrigam a adiar a viagem? Então, quem morre sou eu. Talvez pudesse espreitar para ver se há movimento. E se vejo alguém a carregar um corpo? Aí é que estou feito.»
Quando, por fim, teve coragem de abrir a porta, o corredor era um perfeito deserto. Fosse quem fosse que ali tivesse estado, desaparecera.

Acordou com a sensação de quem quase não dormiu. Fez o check-out e aguardou os colegas, esperando que ninguém mencionasse as atividades pugilísticas da noite. Ninguém o fez. Ou todos, como ele, queriam esquecer o sucedido, ou sonhara. O mundo, às vezes, surpreende-nos entre o que é e o que parece ser.
Olhou em volta, na esperança de ver um chinês todo esmorrado, que ratificasse a violenta cena, no entanto todos se apresentavam de cara limpa.

Ao sentar-se ao volante do carro, rumo ao aeroporto, sentia-se orgulhoso. Fizera a apresentação com maestria invejável. Percebia isso no olhar dos colegas, tão mais experientes do que ele, mas sem o poder da palavra com que Alberto José abrilhantava qualquer exposição.
«Talvez devesse ter seguido política. Bibiana iria adorar ser primeira-dama.»
– Podem dormir, acordo-vos quando chegarmos – disse aos companheiros em tom de brincadeira, mas que estes levaram a sério, pois após poucos minutos já haviam embarcado para o mundo dos sonhos.
Os primeiros quilómetros, dos 140 que os separavam de Milão, foram percorridos com tranquilidade, numa autoestrada quase sem trânsito. Contudo, quando estavam a cerca de metade do percurso, o nevoeiro começou a apoderar-se da estrada, eliminando quase por completo a visibilidade. Alberto reduziu de modo drástico a velocidade e acendeu os faróis.
Doíam-lhe os olhos, sentia-se cansado e esperava não falhar a saída para o aeroporto. Talvez devesse programar o navegador, porém precisava de colocar toda a sua atenção na estrada.
– Hei! Emídio José acorda! – ordenou, abanando o colega que seguia ao seu lado.
– Onde é que estamos? É pá, não se vê um boi. Falta muito para chegarmos? Eu bem dizia que era melhor termos apanhado o avião em Turim.
– Pois e ter de fazer dois voos.
– Está bem, mas ao menos não estávamos… hei cuidado!
O carro, que seguia na frente, entrou em pião, embateu no raile central e voltou para a faixa da direita, imobilizando-se na berma. Eles passaram ilesos por milagre.
– O que é que aconteceu? – perguntou assustado Florindo.
– Talvez devêssemos parar, para ver o que aconteceu. – Alberto José esperava que alguém lhe dissesse para seguir, mas nenhum dos dois abriu a boca.
Estacionou na beira da autoestrada, com precaução saiu do carro e começou a caminhar em direção ao local do acidente. Emídio José imitou-o, só Florindo permaneceu sentado, as pernas ainda tremendo.
Quando se aproximaram, verificaram que o condutor de outro automóvel, que também parara, falava ao telemóvel.
– Acho que podemos ir embora. Nenhum de nós é médico e já estão a chamar o auxílio. – Sem esperar a concordância de Emídio, Alberto começou a caminhar de regresso ao carro.
O restante percurso foi feito de modo lento, acompanhado pelo avanço veloz dos minutos, encurtando de modo cruel o tempo que os separava do voo.
– Vamos perder o avião. Eu bem dizia que devíamos ter ido por Turim – insistiu Emídio.
– Cala-te lá ó ave agoirenta. Perder o avião é tudo o que não pode acontecer. – Alberto José sentiu o coração acelerar só por pensar em tal probabilidade, mas o universo esteve do seu lado e, após uma correria desenfreada pelo aeroporto, embarcaram rumo a Lisboa.
Já sentado na cochia, respirou fundo ao sentir o avião ganhar o céu e olhou com desdém para a sanduíche que lhe colocaram à frente. Comeu-a, sem prazer, mas satisfeito por, em breve, poder degustar uma bela refeição no seu restaurante favorito.
Folheou a revista de vendas a bordo e rendeu-se ao facto de só poder oferecer, à mulher dos seus sonhos, uma prenda banal. Mais tarde, teria de arranjar forma de se redimir. Guardou o perfume na mala e recostou-se, tentando relaxar, apesar da imagem do carro estatelado na orla da estrada não desaparecer da sua mente. Não podia evitar sentir-se culpado por não ter prestado socorro, e fez o que tantas vezes fazia quando se sentia ansioso: colocou a aliança na ponta dos dedos e fê-la rodar ininterruptamente. Freud teria, por certo, uma explicação para este seu comportamento, mas Alberto acreditava que era melhor ignorar o possível significado.
À medida que o coração foi sossegando, a velocidade giratória foi diminuindo até… até que a aliança lhe saltou do dedo e desapareceu. Incrédulo Alberto José olhava de modo alternado a mão e o chão como se aguardasse que a anilha dourada voltasse por sua livre vontade para o dedo anelar.
Agachado no meio do corredor, olhava para os pés dos outros passageiros, que incomodados se agitavam. Da aliança nem sinal. Num tom cordial, a hospedeira aproximou-se e estendeu-lhe uma lanterna, e Alberto percorreu, mais uma vez, a dezena de filas em torno do seu lugar, enquanto Florindo aproveitava para filmar a cena que no futuro arrancaria, sem dúvida, boas gargalhadas.
O tempo lá fora começou a agitar-se e o sinal de apertar cintos pôs termo à busca. Vencido, Alberto sentou-se e mergulhou a cara nas mãos. Estava perdido.
– Não se preocupe, quando aterrarmos e os passageiros saírem pode procurar com calma – tentou tranquilizá-lo a hospedeira.
Chuva e vento forte acolheram-nos à chegada, fazendo abanar o avião, mais do que o desejado, dando à aliança a oportunidade de se enfiar em qualquer recôndita abertura.
Emídio José e Florindo despediram-se, mal disfarçando o sorriso, e assim que o avião ficou vazio reiniciou-se a busca, agora, não só feita por Alberto José, mas também por hospedeiras e pessoal da limpeza, porém com o mesmo resultado.
– Vamos deixar uma nota na central para o caso de outras equipas a encontrarem – disse a chefe da limpeza e, vendo o ar de desalento do rapaz, acrescentou: – Lamento que tenha de partir assim, de mão vazia.
– Agradeço a sua atenção, mas não tem mais importância. A desgraça está feita. Hoje não é o meu dia.
Cabisbaixo, entrou no táxi, no momento em que o telemóvel vibrava incessante, numa violência que lhe pareceu inusual. Indicou o endereço do restaurante e atendeu, preparando-se para se limitar a ouvir.
– Eu bem sabia que não podia contar contigo. Nunca posso. Onde é que estás? Ou me dizes que estás aqui à porta ou vou-me embora. Erro meu ter vindo. Sou mesmo ingénua, continuo a acreditar no que dizes. O meu maior erro foi mesmo ter casado contigo. Não sei onde é que eu estava com a cabeça.
Aproveitando uma pequena pausa de Bibiana para ganhar fôlego, o marido arriscou:
– Estou no táxi. O problema é da chuva. Qualquer pinga entope esta cidade.
Do outro lado, não houve resposta, apenas o desligar da chamada. Alberto fez um movimento para iniciar nova ligação, talvez a mulher tivesse ficado sem rede ou, quem sabe, a bateria acabara, mas desistiu. E se Bibiana tivesse desligado de modo propositado e se preparasse para abandonar o local? Em breve saberia.
Quando saiu do táxi deixou-se ficar ali no meio do passeio, sentindo a chuva que lhe refrescava a cara. A alma, essa, há horas que estava gelada. Respirou fundo e entrou no restaurante. O empregado acolheu-o com um sorriso, recebeu a mala e o sobretudo, acrescentando, ao mesmo tempo que indicava o fundo da sala:
– A senhora aguarda-o na vossa mesa.
Alberto viu as costas tensas da mulher e aproximou-se em silêncio. Com suavidade deu-lhe um beijo no alto da cabeça e colocou-lhe o perfume à frente.
– Lamento não poder oferecer-te hoje algo mais digno de ti. Perdoa-me, foi um recurso de última hora. Nem imaginas como foi o meu dia. Depois te conto, o importante agora é o nosso jantar. Muitos parabéns, meu amor. – Os lábios dela estavam frios, quando receberam os seus.
– O senhor deseja algum aperitivo? – O empregado salvara-o do silêncio que ameaçava instalar-se.
– Acho que sim. Preciso de descontrair. Olhe, surpreenda-me, estou demasiado cansado para escolher.
De copo na mão, arriscou um brinde. Bibiana começava a mostrar um rosto mais descontraído, ainda poderia ser uma bela noite, pensou.
– Queria brindar ao nosso…
– O que é isto? – interrompeu a mulher de forma brutal, agarrando-lhe na mão esquerda com que ele, de modo inadvertido, pegara o copo. – Onde é que está a aliança? Esquecida nalgum quarto de hotel?
– Perdi-a no avião. Podes não acreditar, mas estava a girá-la, como tantas vezes faço, e a malvada saltou-me das mãos e evaporou-se.
– Pois, podes estar certo de que não acredito. Que desculpa mais esfarrapada. Só gostava de saber como é a galdéria. É italiana ou arrastaste contigo alguma portuguesa?
– Bibiana ouve!
– Tu não me digas mais nada. Como sou parva! – De modo brusco levantou-se e começou a dirigir-se para a porta, depois de forma inesperada regressou até junto da mesa, pegou no copo e, sem uma palavra, atirou-lhe o conteúdo à cara, seguindo de imediato em direção à rua.
No restaurante, ficou apenas o silêncio e um homem destroçado.

Com insistência, Bibiana tocou à porta da casa da irmã até que esta a acolhesse. Precisava de um colo amigo.
– Ó rapariga, estás toda encharcada. O que é que aconteceu? Onde é que está o Alberto?
Incapaz de pronunciar uma palavra, a futura mãe deixou-se cair num choro profundo.
– Anda cá. Senta-te aqui. Vou buscar uma toalha.
Com ternura, a irmã cuidou da grávida, a quem a extrema sensibilidade desproporcionava qualquer acontecimento, se bem que a perda de uma aliança não seja algo de somenos importância.
Entre soluços, prantos e lamentos Bibiana relatou o sucedido:
– Imagina tu que ele teve a lata de dizer que estava a brincar com a aliança e a deixou cair no avião. As brincadeiras que ele teve, sei eu quais foram.
– Talvez ele esteja falar verdade – disse a irmã, ao mesmo tempo que um longo sorriso lhe iluminava o rosto.
– Só me faltava que tu achasses graça a isto tudo. Não percebes o quanto ele me magoou?
– Tem calma. Olha aqui. – A irmã estendeu-lhe o telemóvel. O número de visualizações no facebook, de um homem de rabo para o ar e lanterna na mão, no meio do corredor de um avião, crescia a cada minuto.
Bibiana começou a achar-se a mais injusta das mulheres.
– Tenho de lhe pedir desculpa. Coitado! – Dirigiu-se para a porta, abriu-a, mas retrocedeu: – E se tudo isto não passa de uma artimanha para me persuadir da sua inocência? Capaz disso é ele. O melhor é passar cá a noite.

Quita Miguel



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